Poemas de Helder Camara: O Deus escondido

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Eduardo Hoornaert

Neste texto faço um apanhado de poemas espirituais de Helder Camara. Só contemplo os anos 1964 a 1966, desde a época em que ele participa das duas últimas sessões do Concílio Vaticano II até seus primeiros anos como Arcebispo em Recife. As citações provêm da edição das Obras Completas de Helder Camara ainda em curso, a cargo da Editora Cepe, do Governo do Estado de Pernambuco, em Recife. Limito-me a apresentar uma seleção de poemas que aparecem nos volumes I, II e III de dita edição.

 

A originalidade da vida de Helder Camara, sem dúvida, está no fato que ele, desde sua ordenação sacerdotal em 1931, interrompe seu sono, por volta de meia-noite ou por volta de uma da madrugada, durante uma hora ou uma hora em meia, para meditar. Pelo que me consta, ele pratica essa Vigília noturna desde 1931 até 1984, por conseguinte por 53 anos, pelo menos, com poucas interrupções. A Vigília, com o tempo, vai impregnando sua personalidade. Pode-se dizer que a figura do Padre José (que evoquei em dois textos anteriores neste blog: ‘quando Helder Camara capta a dor do mundo’, ‘quando Helder Camara capta a dor da igreja’) aparece em função dessas Vigílias. O Padre José, ao mesmo tempo, transfigura e esconde o Bispo, que – ao insistir na importância da Vigília em sua vida - costuma dizer que de dia, na balbúrdia e na agitação, fica difícil se concentrar no que realmente importa, enquanto de noite as coisas ficam mais claras. Na Vigília da noite, Helder encontra o rumo de sua vida, que consiste em viver dentro de Deus (Carta Circular 28/02/1965, II, II, p. 222).

 

A força espiritual das Vigílias faz com que Helder consiga, a qualquer momento e dentro das mais diversas circunstâncias, mergulhar em Deus. Mesmo em meio a mais intensa agitação externa ou interna. Em fevereiro 1965, por exemplo, pouco antes de viajar a Roma para participar da última sessão do Concílio Vaticano II, ele caminha pelas ruas de Nova Iorque e, ao contemplar o povo em seu redor, logo mergulha em Deus e poetiza:

 

Caminhar pelas ruas de Nova Iorque

Contemplando os Anjos

Contemplando o povo

Mergulhando em Deus

E rezando (Circular 3-4/2/1965, II, II, p. 158).

 

Quem quiser entender Helder tem de entrar com ele na via contemplativa:

 

Se me queres entender

Só há um remédio:

Entra em mim,

Sê um comigo,

No Cristo (Carta Circular 22/08/1966, III, II, p. 146).

 

Não pares

Em meu rosto de pecador

Em minha voz de pecador.

Descobre o rosto

Escuta a voz

Do Filho muito amado (Carta Circular 5/08/1966, III, II, p. 117).

 

Uma cana posta na moenda, o reflexo da lua numa poça d´água, os primeiros cajus do ano, as primeiras mangas, primeiras jacas, primeiras frutas, tudo é ocasião de um mergulho em Deus.

 

Por que não oferecer ao Pai os peixes todos, de tamanhos, feitios e cores tão variados, com maneiras de nadar e mergulhar que lembram baleias? No cimo das montanhas contemplamos os primeiros raios de luz, ainda não tocados, não poluídos, tais como brotaram do Poder Criador. Acordem, intérpretes da Criação, cantores de Deus! Quanta maravilha esperando para ser, de desejo, de coração, tomada nas mãos e apresentada ao Senhor e Pai? (texto citado por Rocha, Z., 2005).

 

Entrando em Recife na qualidade de Arcebispo recém-nomeado, no dia 12 de abril de 1964, ele enxerga Deus no rosto do povo nordestino: no Nordeste, Cristo se chama Zé, Antônio, Severino.

 

Muitas leituras, que Helder recomenda nas Cartas Circulares à Família Messejanense, são meras oportunidades para um mergulho em Deus. E quando ele encontra textos de uma poetisa como Cecília Meireles, os poemas fluem ao longo de diversas Vigílias:

 

Se quiseres apanhar

Para além do corpo

Flagrantes da alma,

Ainda ficarás

Muito na superfície.

Te chamarei fotógrafo

Se, para além do corpo e da alma,

Surpreenderes

Quem mora comigo (Carta Circular 13/03/ 1966, III, I, p. 190)

 

Uma semana depois:

 

Que privilégio

Ter olhos na noite escura,

Ter ouvidos no silêncio imenso,

Para contemplar

O amadurecer das frutas

E a formação do perfume

No coração das flores!

Ir mais longe

Só se Deus permitir

Acompanhar

No interior do homem

O nascimento do amor (Carta Circular 20-21/03/1966, III, I, p. 203).

 

É no pobre que Deus aparece de modo mais surpreendente. Poucos dias depois de chegar a Recife como Arcebispo, andando por bairros pobres, Helder é convidado por um morador a almoçar em sua casa:

 

No casebre miserável.

´mocambo’, como se diz aqui,

O pobre me convidou

Para o almoço.

Não estivesse tão acompanhado

E ficaria.

Que teria ele,

No barraco sórdido,

Metido na lama,

Para oferecer?

Pergunto por perguntar.

Ele apenas te emprestou os lábios.

O convite partiu de Ti,

O anfitrião eras Tu. (Carta Circular 18-19/4/1964, II, I, p. 21).

 

A presença de Deus no pobre sempre surpreende: de repente, comecei a conversar com Deus escondido no pobre. Aí foi conversa de doido (Carta Circular 22-23/3/1965, II, II, p. 295).

 

No final da terceira sessão do Concílio Vaticano II, nos últimos dias em Roma, antes de voltar ao Rio de Janeiro (onde ele saberá de sua nomeação como Arcebispo de Recife), Helder sente subitamente uma exuberante alegria a invadir seu coração:

 

Deus põe música

Na alma de todos

E é traição ao Criador

Não a despertar

Dentro de nós. (Carta Conciliar 2-3/3/1964, I, I, p. 386).

 

Quando Te chamo

Descubro, feliz,

Que o meu brado

É eco de Tua voz (ibidem, p. 385).

 

Pranto de pura felicidade

Porque existes

E és quem és. (Carta Conciliar 3-4/3/1964, I, I, p. 390).

 

Já que estás em mim

No mais íntimo de mim mesmo,

Obriga-me a ser

Como me entreviste

Em teus planos divinos

Ao arrancar-me do nada (ibidem, p. 391).

 

Podes rir,

Podes gargalhar.

Nem imaginas

Quem, dentro de mim,

Ultrapassa os limites,

Rompe as barreiras,

Atinge as dimensões de Deus (Carta Conciliar 7-8/3/1964, I, I, pp. 412-413).

 

Um mês depois, já sendo nomeado Arcebispo de Recife:

 

És Tu, meu Deus Uno e Trino,

Que amas teu universo

Através de minhas entranhas (Carta Circular 18/04/1964, II, I, 20).

 

Quase um ano mais tarde, fazendo o balanço do primeiro ano como Arcebispo, a alegria já aparece temperada por sofrimento:

 

Aqui estou,

Diante de Deus,

Dentro de Deus (Carta Circular 28/02/1965, II, II, p.222).

 

O sofrimento autêntico

É sempre assim:

Tem alta e profunda origem...

Quando não nasce da beleza,

Nasce da verdade,

do bem,

do Um (Carta Circular 12-13/03/1966, III, I, 189).

 

Anos ‘de chumbo’ se anunciam (os anos mais pesados da ditadura militar no Brasil, entre 1968 e 1975). Mas o mergulho em Deus persiste, resiste, traz força e alívio.