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José Comblin 1961: 'A Vocação cristã do Brasil'

Eduardo Hoornaert.

Com apenas pouco mais de dois anos no Brasil, em 1961, José Comblin faz circular, entre missionários estrangeiros, amigos e colegas, um pequeno texto de 27 páginas, intitulado A vocação cristã do Brasil. Originalmente editado ‘pro manuscripto’, sem data, numa Gráfica de Campinas (São Paulo), o texto ganha uma nova edição em 1968, numa coletânea intitulada Os sinais dos Tempos e a Evangelização (Duas Cidades, São Paulo), páginas 51-78. Eis o texto que apresento aqui, em breves considerações.

Entusiasmo pelo Brasil.

Numa primeira leitura, impressiona o teor superlativo, exagerado, do texto. Basta ler as primeiras frases: O Brasil é o maior país católico do mundo. No fim do século contará pelo menos 230 milhões de habitantes. A igreja católica brasileira terá necessariamente que desempenhar o papel de líder do catolicismo mundial. E vem mais: O Brasil forma o padrão a seguir por todos os católicos do mundo... Chegou a hora da igreja brasileira... Na igreja brasileira soou a hora do destino, a hora da opção definitiva. Tal circunstância é única na história dos povos. Não se representará (sic) mais daqui a trezentos ou quinhentos anos, ou quiçá nunca mais. A Europa conheceu uma situação igual no século XII, e nunca mais: a possibilidade de escolher seu próprio destinoDaqui a uma geração, a passagem do estado atual subdesenvolvido ao estado desenvolvido será fato consumado’... Hoje é tempo de criar uma nova cristandade. O novo tipo de cristandade na colaboração com uma sociedade heterogênea. Um padrão a seguir por todos, pois o Brasil tem o que a Europa perdeu: um povo cristão. Aqui aparece a possibilidade de uma ‘nova cristandade’ (p.70 da edição de 1968).

Há quem abandona a leitura do texto aqui, por achar exagerado demais. Mas há de se considerar que o Brasil 1958, para José Comblin, foi ‘amor à primeira vista’ e que, além disso, ele escreve num momento particularmente eufórico da história do Brasil, quando se respira no Estado de São Paulo, particularmente em Campinas, onde passa seus primeiros anos, um ar de entusiasmo. A cidade de São Paulo torna-se, no mundo, uma das metrópoles mais ferventes em termos de progresso. O ano 1958 é um marco na história do Brasil: o país se prepara para acolher um presidente que não vem das alas militares e inspira os empreendedores: Juscelino Kubitscheck; todo mundo sonha com a construção de uma nova capital, Brasília, no interior do imenso país, abrindo frentes de progresso; a arquitetura de Oscar Niemeyer é admirada no mundo inteiro. Isso sem falar da Petrobrás (‘o petróleo é nosso), da indústria automobilística (a Volkswagen do Brasil), da conquista da siderurgia (Volta Redonda), da abertura de estradas, da aviação, etc.

Vinte anos antes, em 1942, outro estrangeiro, o escritor alemão Stefan Zweig, chegando ao Brasil ao fugir dos horrores da guerra em sua terra natal, tem igualmente um caso de ‘amor à primeira vista’ com o Brasil. Escreve o livro Brasil, país do futuro, título que vira um ‘slogan’ que circula por longos anos pelo país, apontando um futuro de grandeza.

Há como enxergar outros paralelos entre o entusiasmo de Comblin e o de intelectuais de renome no Brasil. Nos anos 1930, o escritor e sociólogo Gilberto Freyre, em seu livro clássico Casa Grande e Senzala, sonha com uma ‘democracia racial’ no Brasil, enquanto seu contemporâneo, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, tem uma Visão do Paraíso. O sociólogo francês Roger Bastide sonha em poder ficar trabalhando na Bahia, pois enxerga no candomblé um ‘outro horizonte’, o horizonte africano a fertilizar o Brasil. Mais tarde, Darcy Ribeiro, enxerga no povo brasileiro um ‘povo novo’, construtor de uma nova humanidade. E podemos ainda citar, dos anos 1990, o escritor pernambucano Ariano Suassuna, que igualmente pensa que o Brasil instaura uma nova civilização.

Por conseguinte, para ler com proveito esse texto, escrito sessenta anos atrás, há de situá-lo dentro da mentalidade do tempo. Há de relativizar o que é passageiro, exagerado, até incorreto, para se concentrar no que tem valor para hoje. Assim, por exemplo, ao longo do texto, a predominância católica no campo religioso brasileiro aparece como algo normal. Isso pode ter parecido uma evidência em 1960, quando aproximadamente 90 % dos brasileiros ainda se declaravam católicos, mas, hoje, como sabemos, essa predominância está rapidamente declinando. Hoje, segundo dados de Datafolha 2020, apenas 50 % da população se declaram católicos, enquanto 31 % professam um cristianismo evangélico (principalmente pentecostal) e 10 % se dizem sem afiliação religiosa. Será, pois, indicado ler, no texto, ‘religioso’ onde encontra ‘católico’ e ‘religião’ onde se encontra ‘catolicismo’.

Ler um texto que nos vem do passado, mesmo de um passado não muito distante, exige a capacidade de distinguir entre o que é passageiro e o que conserva seu valor. Há de se ter os mesmos cuidados com importantes artigos de Comblin, publicados na Revista Eclesiástica Brasileira (REB) na década de 1960, como ‘Situação histórica do catolicismo no Brasil’ (1967) e ‘Para uma tipologia do catolicismo no Brasil’ (1968). Artigos que muito têm a nos fazer pensar, hoje, e que felizmente nos foram preservados na mesma coletânea ‘Sinais dos Tempos e Evangelização’ (Duas Cidades, São Paulo, 1968), que apresenta o texto ‘Vocação cristã do Brasil’.

Confesso que tive dificuldade em entender o que o teólogo de 37 anos, novato no Brasil, quis mesmo comunicar com esse escrito. Mas finalmente me convenci: trata-se de um grande texto.

 O discurso desenvolvimentista.

Numa primeira leitura, José Comblin parece compartilhar a ideia desenvolvimentista que, de uma forma ou de outra, caracteriza a cultura ocidental desde pelo menos o final do século XVII. A Renascença não era baseada na fé de um desenvolvimento sempre maior? E o Iluminismo do século XVIII? A Revolução Francesa? A Revolução Russa? No Brasil, a euforia acima evocada em torno da figura de Kubitscheck e exemplarmente evocada no famoso livro de Stefan Zweig não tem uma marca desenvolvimentista? O que significa o slogan ‘Brasil, país do futuro’, senão que um grande destino de desenvolvimento está no horizonte?

Esse desenvolvimentismo, inerente a muitos movimentos da cultura ocidental desde séculos, encontra uma ressonância universal em 1949, quando o Presidente americano Harry Truman (1945-1953), no primeiro discurso oficial da história transmitido pela televisão, acompanhado por milhões de pessoas ao mesmo tempo, proclama o desenvolvimento global como meta mundial. Nesse discurso, Truman passa da clássica narrativa de um Ocidente que tem a missão de civilizar o Sul Global, para um discurso novo. Ele diz que, doravante, os Estados Unidos e a Europa Ocidental (os países ricos) têm a missão de se tornar modelos para o resto do mundo em termos de ajuda humanitária, caridade, altruísmo e generosidade. É, em germe, a narrativa desenvolvimentista. Truman dá a impressão de se distanciar do discurso colonialista, mas de maneira nenhuma fala em justiça entre os países do Norte e suas antigas colônias. Nem toca no nexo causal entre a riqueza do Norte e a pobreza do Sul. Ele fala de uma nova missão ‘divina’, a substituir o domínio colonial de séculos. Uma missão de generosidade e abertura. O Norte tem de impregnar o mundo de ajuda humanitária e de democracia.

O discurso corresponde ao estado dos espíritos após da Segunda Guerra Mundial. Apresentando-se como moderno e atrativo, ganha corações e mentes. Todo mundo passa a falar em desenvolvimento. A Organização Mundial do Comércio (WTO em inglês), logo depois do discurso histórico de Truman, estabelece uma distinção entre ‘países desenvolvidos’ e ‘países subdesenvolvidos’ (ou, de modo mais elegante: ‘em desenvolvimento’). Se o Sul Global não se ‘desenvolve’, é porque lida com má administração de recursos públicos, corrupção, organização insuficiente e influência de ideologias perversas (leia: comunismo). Criam-se novos termos que logo se espalham: ‘primeiro mundo’, ‘terceiro mundo’, ‘mundo desenvolvido’, ‘mundo subdesenvolvido’.  O tema da igualdade de direito entre todos os seres humanos é cuidadosamente afastado dos debates. Invoca-se o velho Aristóteles para afirmar que o mundo é desigual ‘por natureza’ e, portanto, não convém falar em igualdade entre países. A pobreza é um dado da natureza. Invoca-se Darwin para dizer que, na ‘struggle for life’, os mais fortes vencem e desfalecem os mais fracos. 

Em poucos anos, a narrativa de Truman ganha chancelarias diplomáticas no mundo ‘desenvolvido’. Nas mesas de negociação volta, invariavelmente, a mesma recomendação: que os países ‘desenvolvidos’ deem as mãos aos ‘países em desenvolvimento’. Uma recomendação que, concretamente, resulta em contribuições monetárias. Propõe-se que os países ‘desenvolvidos’ reservem uma porcentagem dos impostos para organizações oficiais que se ocupem em fazer chegar o dinheiro ao seu devido destino e encontrem a melhor aplicação. Isso significa, concretamente: mais estradas, mais automóveis, mais viadutos, mais aviões, mais aeroportos. Dinheiro tem de rolar, como promulga Milton Friedman, o papa do desenvolvimentismo, que diz, em 1970: temos de combater o subdesenvolvimento por meio do mercado. Outro ícone da época, Robert McNamara, faz eco: a agenda dos pobres postula transferências monetárias’.

Ao declarar, explicita ou implicitamente, que o colonialismo é uma página virada, o desenvolvimento deixa a porta aberta para sua continuação em formas camufladas. As pessoas ficam seduzidas por um discurso que lhes promete um mundo melhor, e desse modo abrem seu coração para uma besta que ataca, ao mesmo tempo, países colonizadores e colonizados, o Primeiro e o Terceiro Mundo. As pessoas do Primeiro Mundo são levadas a pensar que é possível, ao mesmo tempo, tirar o chamado Sul Global do atraso e continuar a dominá-lo. Colonizar não significa exatamente impedir o desenvolvimento, travar o processo? Como se pode ao mesmo tempo travar e ativar? Como se pode esquecer que o Primeiro Mundo ainda não pagou o devido preço de séculos de colonização e dominação do Sul Global? Perguntas que o desenvolvimentismo escamoteia ao criar a ilusão que ‘a colonização pertence ao passado’ e que precisa ‘virar essa página’. Ora, na história não existem ‘paginas viradas’. O passado volta, não há como evitar. 

O desenvolvimentismo é uma quimera.

 É no breve capítulo 3 (cada um dos 13 capítulos ocupa pouco mais de uma página), intitulado Espírito e Matéria, que o teólogo desfralda seu pensamento. Desvincula-se a questão da espiritualidade da questão do desenvolvimento.  

Espiritualidade não tem nada a ver com desenvolvimentismo. Uso aqui um termo que não aparece no texto de Comblin, mas que - em minha opinião - expressa bem o que ele quer dizer: o desenvolvimentismo é uma ‘quimera’. Na mitologia grega, a quimera é um monstro com cabeça de leão, corpo de cabra, asas de morcego e cauda de serpente. Imagem ao mesmo tempo atrativa e perniciosa. A majestosa cabeça de leão lança chamas pelas narinas e o monstro vaga pelos campos a matar rebanhos. Penetra nas cidades, onde causa sedução e calamidade. A quimera, ao seduzir e assustar ao mesmo tempo, simboliza projetos sedutores que resultam em ilusões destrutivas. Eis como o teólogo Comblin vê o desenvolvimentismo: a realidade é que países ricos se distanciam sempre mais de países pobres e que um minúsculo grupo de riquíssimos controla a economia, a política e a religião, enquanto a imensa maioria da população fica ‘sem voz e sem vez’.

Há quem percebe, desde cedo, o perigo da quimera desenvolvimentista. Relembro aqui alguns movimentos de reação na época. Na década de 1960, o Padre dominicano francês Louis-Joseph Lebret (1897-1966) cria um ‘Centro Economia e Humanismo’, apoiado pelo economista François Perroux (1903-1987), em que se passa a falar em desenvolvimento do homem todo e de todos os homens. Os dois são apoiados pelo sueco Gunnar Myrdal (1898-1987), Prêmio Nobel de Economia 1974, e pelo argentino Raúl Prebisch (1901-1986), o mais destacado intelectual da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, criada em 1948), sediada em Santiago de Chile. A reconsideração do desenvolvimentismo alcança economistas brasileiros como o paraibano Celso Furtado (1920-2004), que trabalha na linha de Raúl Prebisch, cujo trabalho abre a mente de muitos. Prebisch lê, em 1949, num encontro da UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), em Genebra, os resultados de uma estatística, conhecida como Relatório Prebisch, que revela que a tão exaltada ‘década do desenvolvimento 1960-1970’ resultou em países ricos que se tornam mais ricos e países pobres que se tornam mais pobres. E ele dá um exemplo concreto, declarando que estudos mostram que, em troca de cada dólar doado ‘para o desenvolvimento’, 24 dólares voltam aos países ricos.

Outro sinal é dado em Bandung, Indonésia, entre 18 e 24 abril 1955, onde se realiza um Encontro Internacional sobre Desenvolvimento, do qual participam representantes de 29 países da Ásia e da África. A originalidade desse encontro consiste numa inversão total de perspectiva em relação a conflitos mundiais, expressa nas seguintes palavras: O problema do mundo não consiste na oposição entre o Ocidente e o Oriente, mas entre o Norte e o Sul. A contradição do mundo não se origina na oposição política entre um Oeste capitalista e um Leste socialista (como divulga a grande imprensa ao lançar o tema da ‘guerra fria’), mas da exploração econômica do Sul negro ou mestiço, moreno e pobre, pelo Norte branco, rico e poderoso’. Em outras palavras, Bandung rejeita a ideologia do desenvolvimento. Sua mensagem por ser direta e incomum, não é transmitida pelos grandes meios ‘corporativos’ de comunicação, de sorte que poucos, hoje, se lembram de Bandung.

A grandeza do Brasil reside na fé de seu povo.

É nesse contexto que José Comblin escreve a frase em torno da qual gira seu texto inteiro: a riqueza do Brasil é a fé de seu povo (p. 77).  Aqui se revela o teólogo, capaz de enxergar a ação de Deus no acontecer humano. Em numerosos textos e intervenções orais, ao longo da vida, Comblin repete a mesma ideia: o cristianismo europeu, por gigantescos erros cometidos séculos atrás (lembremo-nos da aliança com o poder imperial romano, no século IV, do estabelecimento de uma religião única na Idade Média, etc.) foi perdendo a ‘fé em Deus’. Isso não aconteceu no Brasil, de modo que se possa dizer que o Brasil tem o que a Europa perdeu. Eis uma ideia que acompanha Comblin a vida toda: Se o Brasil conseguir acolher sua vocação, ele vai romper com a ideologia da elite, que não entende nada do Brasil por ficar de olhos fixos na Europa (p. 77).

 Como se chega a uma afirmação tão resoluta, depois de tão poucos anos no Brasil? Isso tem a ver com as peripécias de Comblin nos primeiros anos em Campinas, no interior do Estado de São Paulo: ser capelão de um colégio de freiras, dar algumas aulas de Química e Física naquele colégio e, casualmente, algumas aulas de teologia para estudantes dominicanos em São Paulo. Nada animador. Um ponto luminoso aparece quando ele é nomeado assessor diocesano da Juventude Operária Católica (JOC). Eis como ele mesmo relata a experiência, numa larga entrevista, de mais de cem páginas, com o Professor Antônio Montenegro, da Universidade Federal de Pernambuco, em 1998: Ali descobri as virtudes do povo simples, ainda não deformado pelo espírito de competição e pelo desejo do dinheiro, que são a alma do capitalismo. Eram muito pobres, mas sem amargura...Tinham tudo para serem vítimas. Mas com eles descobri a verdade daquilo que tinha escrito na virada do século o Padre Júlio Maria (Lombaerde, belga, 1878-1944), que sempre me iluminou. Ele afirmou que era a hora providencial para desfazer os laços que atavam o clero às elites dirigentes da nação e reconhecer que os verdadeiros católicos estavam entre os pobres (Montenegro, Antônio Torres, Travessias: padres europeus no nordeste brasileiro (1950-1990), Recife, Editora CEPE, 2019, pp. 134-135). Esses jovens, completa Comblin, ainda viviam em um mundo anterior, pré-moderno. Eram muito pobres, mas sem amargura, ignorando totalmente como vivia o outro mundo, o mundo dos ricos. Eram tão simples que eram explorados pelos patrões sem dificuldades. Por isso, a Igreja devia claramente colocar-se ao lado dos pobres.

Eis um pensamento que encontra resistência entre católicos de classes superiores, imbuídos da ideologia do desenvolvimento. Temos de aguardar até a segunda parte dos anos 1970 para ouvir pessoas da igreja oficial dizer sem embargos que a ideologia do desenvolvimento merece ser abandonada. No decorrer do Concílio Vaticano II (1962-1965), a maioria dos bispos latino-americanos ainda se deixa levar pelo discurso desenvolvimentista dominante, divide o mundo entre ‘nações desenvolvidas’ e ‘nações subdesenvolvidas’ e se entusiasma com programas, oriundos do mundo rico, que visam tirar o mundo ‘subdesenvolvido’ do ‘atraso’, como ‘Aliança para o Progresso’, ‘USAID’ (Agency for International Development), ‘Misereor’ e ‘Adveniat’ (dois programas organizados pele igreja católica da Alemanha). O dinheiro de fora, em grande parte, paralisa as igrejas locais e faz com que elas deixem de procurar de modo independente soluções a problemas que afligem as populações. Chegam à América Latina ‘sacerdotes para o desenvolvimento’, os corredores de Cúrias diocesanas e Casas paroquiais se enchem de pacotes de leite em pó e farinha de trigo, produtos provenientes dos Estados Unidos, com o selo ‘Aliança para o Progresso’. Sacerdotes brasileiros, já na hora da ordenação, recebem um carro financiado por ‘Adveniat’ e prédios são construídos ou comprados com dinheiro de fora: seminários, centros paroquiais, centros de formação de líderes. As finanças das paróquias e das dioceses dependem sempre mais de contribuições de fora.

O universo em que circula José Comblin é totalmente diferente de tudo isso. Ele enxerga um quadro do mundo marcado pelo o fator ‘fé’. Essa visão, de caráter fundamentalmente teológico, traz consigo algumas consequências, das quais cito aqui algumas:

- O catolicismo brasileiro não é uma réplica do catolicismo europeu. Enquanto, para muitos (para não dizer para a maioria), o catolicismo brasileiro não pode, ‘ex principio’, apresentar nenhuma novidade, já que o catolicismo é universal, expressão da revelação divina e, portanto, não sujeito a mudanças nem a particularidades. O catolicismo é igual em todas as partes do mundo. Comblin pensa diferente: assim como o Brasil não é uma réplica da Europa, o catolicismo brasileiro não é simplesmente réplica do catolicismo trazido para estas terras por europeus. Com essa afirmação, ele critica o tradicional ‘trânsito de mão única’ existente entre o pensamento católico do ‘Primeiro Mundo’ e o pensamento católico do ‘Terceiro Mundo’, advoga um ‘trânsito de mão dupla’, um vai-e-vem de experiências e crenças, ou seja, convida os católicos europeus a ouvir as vozes dos países colonizados, assim como apela para que os católicos daqui ouçam as vozes que vem dos países ocidentais. Na rejeição da ‘mão única’, Comblin chega, por exemplo, a questionar o costume de sacerdotes e religiosos irem à Europa para estudar: não se tem certeza da utilidade de tais estudos (p. 75). E, na mesma linha, a igreja católica no Brasil não está precisando de teorias de fora, mas sim de conhecer melhor o povo brasileiro e suas aspirações (p. 76). Vale a pena ler essa pagina 76 por inteiro, pois trata dos efeitos negativos que a influência europeia pode ter no clero e nos religiosos do Brasil. A verdadeira vocação católica do Brasil consiste em colocar-se na frente do movimento de transformação material e cultural do povo brasileiro (p. 77).

- Segundo ponto. Ao desligar o elo entre cristianização e desenvolvimento, José constata que, no decorrer da história, grandes realizações benéficas à humanidade e oriundas do espírito cristão, se realizaram em situações de ‘subdesenvolvimento’. No último capítulo do texto, intitulado Os religiosos (pp. 77-78), ele esboça um impressionante painel em que figuram os grandes fundadores de movimentos religiosos e seus impactos sobre a realidade: São Bento e os beneditinos a ensinar o povo a trabalhar os campos; São Bernardo e os Cistercienses a formar uma cavalaria ´protetora dos desvalidos’ e, desse modo, tentar regular a violência; São Francisco e seu menores, assim como São Domingos e seus pregadores, a fomentar a convivência de cidadãos nas cidades medievais; Santo Inácio e sua Companhia de Jesus a formar uma elite pensante e aberta a novos saberes. Movimentos realizados em âmbitos de ‘subdesenvolvimento’.

- Terceiro: evitar falsos problemas. Os religiosos (as religiosas), praticantes do que classicamente se chama ‘status perfectionis’ (estado de perfeição), têm de evitar falsos problemas, como, por exemplo, o do comunismo: a luta contra o comunismo é uma quimera criada na mente da elite brasileira, ao contemplar o panorama europeu (p. 75). As guerras ideológicas são mais um reflexo de assimilação de padrões europeus. Serão capazes apenas de afastar a inteligência brasileira do estudo concreto e desinteressado da realidade brasileira (p. 75).

- Quarto: trata-se, afinal, de combater a pusilanimidade e cultivar a magnanimidade. Pensar grande, pensar o Brasil e a igreja fora de quadros ideológicos induzidos de fora, importados com a colonização. Deixar de se preocupar demais com problemas da corte vaticana, deixar de se preocupar com a falta de vocações sacerdotais e religiosas. A questão não é a falta de vocações à vida religiosa, a questão é a falta de magnanimidade. A magnanimidade atrai vocações, a pusilanimidade as afasta.

- Quinto: tudo isso implica em um novo modo de se encarar a ‘religiosidade popular’, enigma para muitos pastoralistas. Acontece que a religiosidade, em vez de constituir um problema, é o ponto de partida de um trabalho realmente frutuoso. Há de se ouvir o que os pobres dizem e tentar compreender o que eles pensam. Conviver na medida do possível. Isso implica em ter o coração compungido pela dor dos indígenas secularmente perseguidos, dos milhões de africanos trazidos pelo oceano, das mães que choram a perda do filho, do pai que labuta para sobreviver numa sociedade que não é feita para ele.

- Em tudo isso vai, implicitamente, uma crítica a certas experiências ligadas à Teologia da Libertação, que não consideram com bastante atenção a necessidade de se estabelecer um vínculo com a fé do povo. Quando a religiosidade popular é encarada como problema a ser superado, e não como ponto de partida, ela se torna pedra de tropeço e provoca a queda da experiência, como já aconteceu frequentemente na história. Os pobres não se identificam mais com o discurso de seus ‘libertadores’ (como aconteceu com a experiência soviética)e relutam em participar de um sistema fechado, imposto de fora para dentro. Há de se conseguir, por conseguinte, a simpatia dos pobres, e evitar um sistema fechado de pensamento que não funciona na prática. 

Conclusão.

‘A Vocação cristã do Brasil’ é um texto a ser preservado e relido, pois ‘cola’ com a realidade da pobreza que testemunhamos a cada dia, e mostra como dela pode emergir a santidade cristã. O pequeno livrinho de 1961 aguça nossa sensibilidade diante de um povo que nos serve diariamente em ‘trabalhos manuais’, trabalhos que em não poucos casos exigem capacidades muito além dos exigidas de um simples trabalhador braçal, capacidades de atendimento e cuidado, no trato de doentes, na dedicação por vezes ilimitada com pessoas deficientes, na admirável capacidade de negociação com pessoas da elite, na infinita paciência. Um povo que se sustenta pela ‘fé em Deus’ e vive no Egito à espera do Êxodo.

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