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JOSÉ COMBLIN: Missão e formação no Nordes 1

Alder Júlio Ferreira Calad

 

 

 Na oportunidade em que fazemos memória de José Comblin, este “profeta da Liberdade”, como o costumam chamar figuras como Marcelo Barros, Sebastião Armando Gameleira Soares, Mônica Muggler, entre outras, permitimo-nos prestar homenagem a algumas personalidades-chave nos estudos, nas pesquisas e em momentos luminosos do cotidiano de José Comblin, bem como das experiências missionárias nele inspiradas, em especial no Nordeste brasileiro. Nas pessoas de Eduardo Hoornaert, Mônica Muggler e João Batista Magalhães, homenageamos diversas outras. 2

Trata-se, de um lado, de igualmente destacarmos aspectos de sua postura, de seu testemunho pessoal, vivenciado em meio dos pobres do Nordeste, o que se obtém por pesquisas mais diretamente voltadas a recolher testemunhos de numerosas pessoas anônimas e de referência que o acompanharam mais de perto - parte do que se faz presente na densa biografia escrita pela missionária Mônica Muggler, no livro intitulado “José Comblin, uma vida guiada pelo espírito” -, bem como, não menos importante, destacar sua enorme contribuição de pensador, de escritor. Este último traço constitui uma dimensão de enorme importância na trajetória missionária e pedagógica do Pe. José Comblin. Com efeito, durante seu tempo de missão e formação no Nordeste, sobretudo seu tempo de ação missionária e pedagógica na Paraíba, entre 1981 a 2008/2009, sua contribuição especificamente de produção teológica corresponde a culminância de sua produção, de sua contribuição mais aprimorada sobre a tradição de Jesus, campo em que recolhemos o melhor de sua produção bibliográfica, bem como o melhor que se pode ler no campo pneumatológico, de contribuição à Teologia da Libertação.

Uma das contribuições emblemáticas, ainda que pouco lembrada, tem a ver com sua ativa participação entre os membros de um primeiro grupo fundador da Teologia da Libertação. Com efeito, desde meados dos anos 60, seja a partir do Brasil, do Chile, do México, formou-se um grupo que se reunia periodicamente para tratar especificamente do processo de libertação na América Latina, principalmente do ponto de vista teológico, com bastante abertura interdisciplinar, recorrendo inclusive às ciências sociais. Deste grupo composto por cerca de uma dezena de teólogos, dentre os quais, Juan Luis Segundo (Uruguai), Gustavo Gutierrez (Perú), José Comblin, Ivan Ilich (México), Franz Hinkelammert(Honduras), Ignácio Ellacuría (San Salvador), Frei Gilberto Gorgulho (Brasil), Segundo Galilea (Chile), Henrique Claudio de Lima Vaz (Brasil), dentre outros, aos quais logo se associariam outros e outras, cada qual a partir do seu campo temático, tais como James Cone (EUA), Jon Sobrino (El Salvador), Frei Carlos Mesters (Brasil), Ana Flora Anderson (Brasil), Otto Maduro (Venezuela), Paulo Suess (Brasil), Lúcia Gera (Argentina), Juan Carlos Scannone (Argentina), François Houtard (Equador), Luiz Alberto Gomez de Souza (Brasil), Ronaldo Muñoz (Chile), Enrique Dussel (Argentina/México), Hugo Assman (Brasil), Eduardo Hoornaert (Brasil), José Oscar Beozzo (Brasil), Paulo Freire (Brasil), Leonardo Boff (Brasil), Clodovis Boff (Brasil), Libânio Christo (Brasil), Hugo Echegeraray (Perú), Frei Betto(Brasil), Pablo Richard (Chile/Costa Rica), Manfredo Oliveira (Brasil), Elsa Tamez (Costa Rica), Ivone Gebara (Brasil), Maria Clara Bingemer (Brasil), Victor Codina (Bolívia), Benedito Ferraro (Brasil), Jung Mo Sung (Brasil), Marcelo Barros (Brasil), Reginaldo Veloso (Brasil), Agenor Brighenti (Brasil), Luis Carlos Susin (Brasil), Sebastião Armando Gameleira Soares (Brasil), Agostinha Vieira de Melo (Brasil), Luís Carlos Araújo (Brasil), Francisco Aquino Júnior (Brasil), entre outros/as . Comblin era um dos mais assíduos participantes do primeiro grupo em distintas reuniões e encontros realizados, em diferentes países da América Latina. Trata-se, portanto, de um grupo propriamente fundador da Teologia da Libertação, que teve prosseguimento com a contribuição efetiva de teólogos e teólogas de gerações seguintes, já mencionados/as.

No caso específico do Padre José Comblin, tratava-se de uma das figuras mais assíduas a participarem dos vários encontros realizados, em distintos países da América Latina, inclusive em Cuernavaca, México, na companhia de Ivan Ilich e tantos outros. A contribuição de Comblin não se dava apenas em sua reconhecida contribuição presencial, mas igualmente na ininterrupta produção de livros e artigos propostos, por ocasião destes encontros. Em um deles, foi acolhida a proposta de publicação de textos específicos sobre temas bíblicos variados, na perspectivas da Teologia da Libertação. Um dos temas preferidos do Padre Comblin, porque fortemente ligado à sua formação teológica, dizia respeito aos Evangelhos. Outros se apresentaram para aprofundarem este tema. Tímido como era, embora tivesse muita vontade de assumir o aprofundamento, sob a perspectiva da Teologia da Libertação, de um dos Evangelhos, outros se apresentaram antes dele, de sorte que se contentou com assumir outro tema de sua preferência, algumas cartas paulinas, dentre tantas cartas que estavam sob sua mira de exegeta.

De outra feita, aí já em inícios dos anos 80 foi acordada a produção de algumas dezenas de textos de aprofundamento sobre um vasto temário assumido pela Teologia da Libertação. Esta iniciativa foi cunhada de “Teologia e Libertação”, proposta assumida pela Editora Loyola. Importa destacar que esta coleção começou a circular com a explícita aprovação de mais de uma centena de bispos latino-americanos, cuja lista chegou a constar nos primeiros volumes desta coleção, cujo total foi pensado para pouco mais de 50 livros, dos quais saíram pouco mais de 3 dezenas, dada a perseguição movida por Roma, e apoiada pela retirada de muitos dos bispos signatários daquela proposta. Nesta vasta coleção, o Padre José Comblin contribuiu com duas publicações: “Antropologia cristã”, “O Espírito Santo no mundo” . Reconhecidamente, Comblin se destacava como um dos primeiros a apresentar, no tempo mais breve possível, o resultado de suas pesquisas. Enquanto isto, não poucos retardavam a entrega de seus trabalhos, o que provocava certa impaciência no teólogo José Comblin.

Retornando às contribuições específicas de José Comblin, em sua experiência missionária no Nordeste, especialmente, desde a Paraíba, de fato, foi durante este período que ele logra oferecer o melhor de suas contribuições pneumatológicas, passando a realizar um projeto que já havia assinalado em um de seus livros, “O Espírito Santo no mundo" publicado pela Vozes em 1979. Neste pequeno livro, José Comblin antecipa cinco palavras-chave que assinalam a forma própria da ação do Espírito Santo no mundo, projeto que ele realizaria em seu tempo de ação missionária e pedagógica, no Nordeste, e especialmente durante seu tempo de vivência na Paraíba. Isto não significa que, quando viveu em Recife, durante sete anos, ou na Paraíba, durante vinte oito anos, ou quando viveu em Barra - BA, durante dois ou três anos - cerca de quarenta anos no Nordeste - , ele tenha aberto mão de viajar com frequência para trabalhos missionários, seja em Louvain, seja em Riobamba, seja na América Central, seja em outras regiões do Brasil, etc. Pe. José Comblin, como poucos, conseguiu responder generosamente a múltiplos convites, fora do Nordeste, o que não o impedia de trazer sua contribuição específica desde a Paraíba, desde o Nordeste.

 

É assim que, já em 1982, consegue trazer a lume seu denso ensaio pneumatológico, de mais de 400 páginas, intitulado “Tempo da ação”, publicado pela editora Vozes, em 1982. Quatro anos depois, precisamente em 1986, aparece outro alentado livro seu, intitulado “A força da palavra”, de cerca de 400 páginas, também editado pela Vozes. Estes livros foram cada qual requerendo semanas e semanas de reflexão, estudados minuciosamente pelo grupo Kairós, que passou a reunir-se semanalmente, inclusive nos dias atuais, quando o grupo está refletindo a cada quinta-feira o livro que o grupo estima como o seu testamento, livro póstumo, intitulado “O Espírito Santo e a tradição de Jesus”, publicado em 2012. Voltando à sequência de sua contribuição pneumatológica à Teologia da Libertação, surgiu em 1998, seu terceiro livro correspondente àquelas palavras-chave antecipadas em seu livro de 1978. Desta vez, José Comblin se debruçava sobre a liberdade, por meio de seu livro “Vocação para a Liberdade” editado por Paulus, 1998. Em 2002, um ano antes de completar seus 80 anos, e de vivenciar aquele momento de celebração especial de seus 80 anos, experiência bem expressa no livro “A esperança dos pobres vive”, eis que José Comblin enfrenta outra palavra-chave, “Povo de Deus”, editado também pela Paulus, em 2002, trazendo reflexões sempre percucientes acerca do povo de Deus, expressão secularmente ausente na Teologia Cristã dominante, especialmente a Católica, e recuperada pelo Concílio Vaticano II, não obstante suas limitações bem exemplificadas no mesmo livro. A quinta expressão-chave que o Pe. José desenvolve é expressa no livro “A vida com liberdade”, em que se busca caracterizar o sentido da vida cristã inspirada no Espírito Santo. Entre 1983 e 1986, voltando-se diretamente às experiências de formação missionária, no Nordeste, Comblin escreveu quatro livros correspondentes ao seu breve curso de teologia, a título de textos formativos de grande alcance teológico pedagógico, denominados “Jesus Cristo e sua missão”(Vozes, 1983), “O espírito Santo e sua missão” (Vozes, 1984), “A Igreja e sua missão (Vozes, 1985) e “A sabedoria cristã” (Vozes, 1986). Importa também destacar outros tão importantes, tais como “O caminho”, “A verdade”, “A Ideologia da Segurança Nacional o Poder Militar na América Latina” (Civilização Brasileira, 1978), “Um novo amanhecer da Igreja” (Vozes, 2002).

“A profecia na Igreja”, em que ele faz questão de dedicar um capítulo inteiro a 10 figuras de Bispos-Profetas latino-americanos, que ele considera Santos Padres da Igreja da América Latina. 

 

Como se percebe, o legado de José Comblin tem um caráter compósito, isto é, só pode ser melhor compreendido quando apreciado em distintas dimensões, de modo a integrar ao mesmo tempo, sua contribuição de escritor fecundo, seu estilo de vida pessoal, sua atuação pedagógica no meio dos pobres, bem como os frutos recolhidos das e nas diversas experiências missionários inspiradas em sua pedagogia missionária. Em vão, se procura entender bem José Comblin, apenas por uma única destas dimensões. 

 

Dos bem vividos 53 anos de José Comblin em território latino americano, 40 anos ele trabalhou como educador missionário no Nordeste, enquanto 28 na Paraíba. Portanto, mais da metade (em torno de 75%) de seu trabalho missionário na América Latina ele viveu no Nordeste (55% na Paraíba). Após ter passado de 1958 à 1962 em Campinas-SP, onde, a convite do Bispo Diocesano, trabalhou como professor do seminário e de um colégio religioso, como professor de ciências, e ainda tendo a experiência de trabalho como assistente da JOCS em Campinas, também em São Paulo, na faculdade de teologia dos Dominicanos, ocasião em que Frei Betto o conheceu, ele segue para Santiago, a convite do reitor da Universidade Católica daquela capital, para atuar como professor de teologia, justamente no período em que se realizava o Concílio Vaticano II (1962-1965). Foi justamente em 1965, a convite de Dom Helder Câmara, que Comblin chega ao Nordeste brasileiro, mais precisamente em Recife, para atuar como professor e diretor de estudos do Instituto de Teologia de Recife (ITR), cargo em que atuou de 1965 até 1972, quando é expulso do Brasil pela ditadura militar então imperante. Em seu exílio, Comblin retorna ao Chile, desta vez para a Diocese de Talca, acolhido que fora pelo amigo de Dom Helder, Dom Manoel la Rain e por Dom Carlos Gonçales. No Chile permanece até 1980, quando é expulso pela ditadura militar capitaneada por Pinochet. Entre outros motivos, pode estar aí presente a publicação do seu livro“A Ideologia da Segurança Nacional o Poder Militar na América Latina” (Civilização Brasileira, 1978) uns dos clássicos, nas Ciências Sociais NA AMERICA LATINA, SOBRE O TEMA. De 1981 a 2008/2009, José Comblin vive na Paraíba (no Seminário Rural, no avarzeado município de Pilões), em 1981 e em 1982. Com o fechamento daquela experiência de formação de jovens vocacionados ao sacerdócio, a serviço dos trabalhadores rurais, com os quais estavam comprometidos, proposta não acolhida por Roma, uma vez fechado aquele seminário rural, a experiência se abre, agora já em Serra Redonda, para a formação de missionário e missionárias leigos. Experiência que tem início uma vez acolhida por Dom José Maria Pires, então Arcebispo da Paraíba, a formação de jovens do meio rural, seja em sua versão masculina - em Serra Redonda-, seja em sua versão feminina, em Mogeiro. Uma experiência que depois se desdobraria em várias outras - uma dezena - de acordo com a vocação manifesta por jovens em formação. Daí resultam experiências fecundas, tais como a da criação da associação dos missionários e missionárias do campo, em meados da década de 90, bem como a fraternidade do discípulo amado, iniciado ainda em Serra Redonda e tendo continuidade no sítio catita Colônia Leopoldina - AL, experiência protagonizada por jovens com vocação contemplativa. Além destas, cumpre mencionar a experiência formativa protagonizada pelos membros da associação Árvore, sediada no município de Bayeux, no sítio São José, onde Comblin passou a residir desde aproximadamente 1994-1995. Antes disto, já havia nascido a experiência de jovens missionários vocacionados a peregrinação, tanto em estilo individual (é o caso de jovens como Antônio José, Valdo e outros), seja em sua versão coletiva, iniciada sob a coordenação do jovem Artur Peregrino, do movimento dos peregrinos e peregrinas do Nordeste, em 1986. Vale ainda mencionar as afinidades profundas, igualmente inspiradas pela pedagogia Combliniana, da Associação dos Missionários e Missionárias do Nordeste (AMINE), animada por leigos e leigas e por alguns presbíteros, a exemplo de Frei Roberto Eufrásio de Oliveira, exímio discípulo de José Comblin. Também importa acentuar o nascimento de umas experiências mais frutuosas, inspiradas especialmente na pedagogia combliniana: trata-se da criação, em Juazeiro-BA da primeira escola de formação missionária, que é seguida por outras espalhadas pelo Nordeste, mais precisamente, a escola missionária de Santa Fé (depois transferida para Mogeiro), a Escola de Formação Missionária de Floresta - PE, a Escola de Formação Missionárias de Esperantina -PI, a Escola de Formação Missionária de Barra-BA, a Escola de Formação Missionária de São Félix do Araguaia - MT. Ainda não é tudo. Outras experiências inspiradas na pedagogia combliniana também tem início, tais como a do grupo Kairós Nós Também Somos Igreja, experiencia iniciada em 1998, na residência do Pe. José Comblin, com reuniões incialmente mensais, realizadas na companhia deste teólogo, bem como mais recentemente a formação do Grupo José Comblin, com atuação mais forte nas redondezas de Café do Vento, município de Sobrado - PB, tendo no Pe. Hermínio Canova uma das referências mais atuantes. 

 

Nestas experiências, José Comblin esteve diuturnamente envolvido, durante este período, ministrando aulas, assessorando formadores e formadoras, atuando como um grande conselheiro, doando-se a causa missionária do segmento de Jesus. Aqui, convém fazer referência a um momento muito especial que foi a celebração comunitária dos seus 80 anos, comemorada por algumas centenas de pessoas vindas de várias partes da América Latina, do Brasil, especialmente do Nordeste, mas também do Canadá, dos EUA, da Europa. Este episódio tem um registro muito especial, com a publicação do livro “A esperança dos pobres vive”, no qual se encontram dezenas de testemunhos e de reflexões compartilhadas por missionários e missionárias por toda a América Latina, terra de missão especial escolhida por José Comblin. 

 

Seus trabalhos prosseguiam vivamente, para além dos seus 80 anos. Em um dos episódios marcantes deste período seu no Nordeste é o que envolveu fortemente a figura de um franciscano, Bispo da Diocese de Barra-BA, Dom Frei Luis Cappio. Em resposta ao projeto governamental de transposição das águas do Rio São Francisco para Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, Dom Cappio, juntamente com o apoio, a adesão e a participação de diversos grupos e movimentos eclesiais e da sociedade civil, houve por bem manifestar forte resistência, por duas vezes. Em 2007, quando estavam sendo realizados os trabalhos do projeto de transposição para a região de Cabrobó, Dom Capio, respondeu com um jejum -outros o chamaram de greve de fome- por 11 dias. Entre estas numerosas pessoas que vieram em apoio e solidariedade ao testemunho profético de Dom Luis Capio, estava Padre José Comblin. 2 anos depois não surtindo efeito sua atitude profética perante a disposição governamental de prosseguir o projeto de transposição, Dom Luis Cappio volta a oferecer-se como testemunho profético de resistência pela salvação do rio e dos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pescadores, agricultores que viviam do rio. Desta vez Dom Luis Cappio passa 22 dias em jejum, às margens do São Francisco, em Sobradinho, na Bahia, contando mais uma vez com o testemunho solidário de diversos grupos pastorais, de movimentos populares, de pessoas de referência, a exemplo, mais uma vez do Pe. José Comblin. Tanto o teólogo quanto o Bispo passaram a ter um relacionamento denso, fraterno, de compromisso com a causa dos pobres. Aqueles e aquelas que lá estiveram, ao lado da Igreja em que o Bispo se hospedou, durante o período de longo jejum, podiam ver a certa distância, Dom Cappio e José Comblin, sob a sombra generosa de uma árvore, a conversarem, a trocarem ideias. Foi por esta ocasião que Dom Cappio solicita a José Comblin, já à altura dos seus 85 anos, convidando-o para ir morar em sua Diocese, na Barra. Convite que é aceito e que faz Comblin, naquela idade, deixar a Paraíba e ir morar em Barra, na Bahia. Foi aí que ele viveu, sempre trabalhando, em companhia também de Dom Cappio, da Missionária Mônica Muggler e de tantos outros e outras missionários iria passar seus últimos anos, tendo sido chamado à casa do Pai, em sua grande viagem definitiva, em 27 de março de 2011, quando se encontrava perto de Salvador para um compromisso missionário. 

 

Importa lembrar como sua Páscoa mexeu profundamente com centenas e milhares de pessoas, de grupos, de associações, de movimentos eclesiais e populares espalhados na América Latina e para além de nosso continente, disto é prova o número grandioso de mensagens enviadas, em memória do Pe. José Comblin. (cf. https://revistaconsciencia.com/a-pascoa-do-pe-jose-comblin-22-03-1923-27-03-2011/).

 

Ainda acerca destas numerosas mensagens de pesar ou antes, de saudades, e sobretudo de agradecimento pela frutuosa vida do Pe. José,  cumpre lembrar uma amostra destas mensagens enviadas em meu e-mail e que recolhi e compartilhei. Cada uma destas experiências inspiradas na pedagogia do Pe. José Comblin e por ele animadas, com assiduidade, com perseverança e com entusiasmo missionário, seria preciso fazer importantes considerações, pontuando seus traços característicos, sua missão específica, seus protagonistas, sua metodologia de ação, entre outros pontos, o que exigiria um outro espaço de registro e de análise. Mas, importa destacar, com bastante ênfase, que uma compreensão mais próxima do caráter missionário e pedagógico testemunhado por José Comblin, exige de nós irmos além destas experiências, buscando implementá-las com dois outros aspectos de sua trajetória existencial como missionário e como pedagogo. 

José Comblin tem, como poucos, um profundo legado que dificilmente se pode compreender sem buscar decifrá-lo, em sua integridade, isto é, sem que o entendamos como portador de um legado com o compósito, ou seja, não há como compreender melhor este teólogo, este missionário e profeta da liberdade (como costumam chamá-lo figuras como a de Marcelo Barros, Mônica Muggler, Sebastião Armando Gameleira e outros), para além dos seus escritos, por mais importantes e fundamentais que estes também o sejam. Uma melhor compreensão do seu legado deve ser buscada para além dos seus livros e artigos (cerca de 70 livros e mais de 400 artigos). Este cuidado torna-se tanto mais relevante quando se percebe, ainda que de forma sutil, alguma tentativa de domesticá-lo. Risco também presente em outras figuras de referência  Na tentativa de se apresentar o perfil destas personalidades dotadas de reconhecido potencial revolucionário (a exemplo do que aconteceu/acontece a Francisco de Assis e outras), cuida-se de superestimar sua dimensão de intelectual, em detrimento em outras dimensões não menos relevantes de seu perfil, todas a serem entendidas em suas interconexões.l Apenas para um exemplo ilustrativo: por mais relevantes e profundos que sejam - e os são! - seus escritos, este caminho perderia força, se não o conectamos ao seu testemunho de vida pessoal (manifesto não apenas em sua biografia, tal como a escrita por Mônica Muggler, e os exemplos de vida de Comblin relatados por numerosas pessoas simples e anônimas que o conheceram), bem como pelo olhar atento e avaliativo e prospectivo em tantas experiências comunitárias por ele semeadas ou nele inspiradas.  Neste sentido, resulta relevante a pesquisa sobre ele, que vem sendo conduzida por Elenilson Delmiro dos Santos, atendo-se especialmente aos relatos de pessoas simples que o conheceram ou com ele conviveram.

Esta constitui por certo uma dimensão fundamental do seu legado, mas ainda assim insuficiente para dar conta, de modo menos incompleto, da inteireza do seu legado. Para tanto, urge complementar a compreensão do seu legado escrito com pelo menos outras duas dimensões: a de analisar com cuidado e atenção, o testemunho pessoal que Comblin apresenta, ao longo de sua vida, desde o ambiente familiar, passando pela sua ligação religiosa de criança junto com seu irmão André e os demais irmãos, acompanhados de perto pela sua mãe, D. Alice e pelo seu pai Firmo. Passa pela experiência de estudos na escola fundamental e no ensino médio. Passa também pela sua entrada no seminário, aos 17 anos. Passa pela sua entrega aos estudos durante dez anos, desde a graduação à sua pós-graduação (doutorado), aqui destacando grande influência que teve do seu Orientador de tese Lucien Cerfaux, bem como de professores tais como  Gustave Thils (Cf.sua categoria de “Realidades terrestres”) e Roger Aubert. Passa pela sua experiência de formador junto aos jovens componentes daquela experiência, passa pela sua experiência de vigário. Passa, não menos, pela sua decisão de ser um missionário no terceiro mundo, especialmente, na América Latina, aonde chegou com 35 anos. Passa pela sua experiência de vida inicialmente em Campinas. Passa pela sua primeira experiência no Chile, entre 1962 a 1965, período em que se realizava o Concílio Vaticano II. Passa pela sua chegada, a convite de Dom Helder, a Recife, em 1965, para ser um dos principais assessores de Dom Helder, com quem contribuiu de maneira profícua, em vários momentos, principalmente, oferecendo-lhe a pedido do próprio Dom Helder, preciosos subsídios, inclusive para a realização da Conferência Episcopal Latino-Americana em Medellín, realizada na Colômbia, em 1968. Passa pela sua fecunda contribuição como diretor de estudos do Instituto de Teologia de Recife (ITER). Passa pela sua experiência docente no Seminário Regional Nordeste II e no próprio ITER. Passa pela sua contribuição, acatando múltiplos convites para palestras, assessoria, artigos sobre vários temas. Passa pelo seu envolvimento profético a serviço da causa dos pobres, que lhe rendeu a expulsão do Brasil, pela ditadura militar, em 1972. Passa pelo retorno ao Chile, onde passaria seu exílio fecundo, desta vez, em Talca, a convite de Dom Manuel Larraín e de Dom Carlos González. Passa pelo seu empenho em dar sequência ao trabalho da Teologia da Enxada que havia inspirado, junto com o  protagonismo de jovens seminaristas, em 1969, tanto em Tacaimbó- PE quanto em Salgado de São Fèlix – PB. O trabalho realizado em Talca busca dar sequência, dentro da inspiração da Teologia da Enxada, a este trabalho, que o leva a, juntamente com uma preciosa equipe da qual faziam parte seu grande amigo Enrique Correa, sacerdote, e o Diácono Agustín Dial, buscando implantar o seminário campesino, que respondeu à necessidade de formação de padres a serviço dos camponeses. Passa pelo seu retorno ao Brasil depois de sua expulsão do Chile, pela ditadura de Pinochet, vindo residir definitivamente no Brasil, desta vez na Paraíba e, em seus dois, três últimos anos, em Barra – BA.

Outra dimensão a ser tomada em conta, de modo complementar, às demais, diz respeito ao conjunto de experiências missionárias protagonizadas por leigos e leigas e sob sua inspiração pedagógica e teológica. Trata-se de mais de uma dezena de experiências missionárias vivenciadas na Paraíba e em Barra, tais como a criação do Seminário Rural (dando continuidade à experiência do Seminário Campesino, em Talca, que por sua vez corresponde a um sequenciamento do Espírito da Teologia da Enxada), O Centro de Formação Missionária (em sua versão masculina, em Serra Redonda – PB) e em sua versão feminina, vivenciada em Mogeiro), à associação dos missionários e missionárias do campo, à associação dos missionários e missionárias do Nordeste (AMINE), à fraternidade do discípulo amado, o curso da Associação Árvore, às escolas de formação missionária (em Juazeiro – BA, desde 1989, a de Santa Fé – PB, depois transferida para Mogeiro e recentemente de volta a Santa Fé, a de Floresta – PE, a de Esperantina – PI, a de Barra – BA, a de São Félix do Araguaia – MT), a experiência de peregrinação, seja em sua expressão individual (Antônio José, Valdo) seja em sua dimensão coletiva, a partir da criação sob a coordenação de Arthur Peregrino, do movimento de peregrinos e peregrinas do Nordeste, desde 1986, o grupo Kairós – Nós também somos Igreja, criado desde a residência do Padre José Comblin, em 1998, quando do lançamento do livro Vocação para a Liberdade, grupo que até hoje segue estudando as obras de Comblin e de outros teólogos e teólogas contemporâneos, o grupo José Comblin, em torno das comunidades de Café do Vento, município de Sobrado – PB, com a coordenação fecunda do padre Hermínio Canova. Estas experiências constituem sinais visíveis da semente ou das sementes lançadas por este profeta da liberdade.

Quanto ao chamamento que o Espírito pode estar suscitando entre aqueles e aquelas que se dispõem a prezar este legado abençoado de José Comblin, valha-nos de exemplo a imagem utilizada por Dom Flávio Cappio, bispo de Barra – BA, por ocasião de um retiro por ele pregado, com a presença e participação do padre José, em Mogeiro – PB, poucos dias antes de sua grande viagem. Naquela oportunidade, Dom Frei Luiz Cappio fazia menção de uma imagem pedagógica bastante rica: a de que a discípula, o discípulo de Jesus de Nazaré não devia ficar limitado a contemplar, sob tantos aspectos e detalhes, o dedo do Nazareno, mas buscar a direção para a qual Ele aponta. De modo semelhante ou analógico, cumpre-nos, em vez de nos cingirmos a uma contemplação individual de Comblin, prestar atenção à direção para onde aponta o seu dedo profético e libertador. Neste sentido alegra-nos poder acompanhar a continuidade viva deste processo. Para citar apenas um exemplo ilustrativo, lembramos a participação de jovens teólogas feministas, provenientes de experiências comblinianas, em especial das escolas de formação missionária e do CEBI, a exemplo de Elinaide Carvalho, Glória Carneiro, Jéssica da Silva, Jardene (cf. https://teologianordeste.net/).



1 Transcrição (Eliana Calado, Gabriel Luar Calado, Heloíse Calado) da exposição ampliada feita a partir da comunicação oral, apresentada por ocasião da mesa “José Comblin: Missão e Formação no Nordeste” apresentada quando da II Jornada José Comblin, promovida pelo Centro de Pesquisa e Documentação José Comblin, da UNICAP, Recife, 11/06/2021. O texto reflete, portanto, um tom de oralidade. 

 


2 Um tributo especial a Eduardo Hoornaert se deve pela estreita proximidade e pelo acompanhamento que vem exercitando com José Comblin, pelo menos desde 1958, quando, ambos belgas chegaram ao Brasil. Desde então, Eduardo tem se dedicado seja pela convivência com Comblin, ambos integrando (junto com outras figuras) a equipe de assessoria de Dom Helder Câmara, seja em várias experiências de estudos e encontros teológicos, seja sobretudo pelo incansável empenho em estudar seus escritos (cf. www.eduardohoornaert.blogspot.com). À missionária Mônica Muggler devemos, graças ao sistemático acompanhamento, desde meados dos anos 80, da vida missionária de José Comblin, a excelente biografia que escreveu sob o título “José Comblin: Uma Vida Guiada pelo Espírito”. A João Batista Magalhães devemos o testemunho de quem segue José Comblin, desde os inícios da Teologia da Enxada, na segunda metade dos anos 60, tendo participado vivamente das várias experiências missionárias e de formação de Comblin pelo Nordeste, sendo ele relevante referência da Fraternidade do Discípulo Amado. Associados - associadas a estes, também homenageamos: Raimundo Nonato Queiroz (“In Memoriam”), Ir. Maria Emília Ferreira (“In Memoriam”), Ir. Agostinha Vieira de Melo (“In Memoriam”), Marcelo Barros, Ivone Gebara, Luís Barros, Pastor Luciano Batista de Sousa, Pator Paulo Cesar Pereira, Joselita Tessarotto, Dom Antônio Batista Fragoso (“In Memoriam”), Frei Hugo Fragoso (“In Memoriam”), Humberto Plummen (“In Memoriam”) e tantas outras figuras que nos têm ajudado a conhecer melhor José Comblin, seja como um “intelectual orgânico” a serviço dos pobres, seja como um missionário profeta, seja como um semeador de experiências libertárias..

 

João Pessoa, 27 de junho de 2021.

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