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AMÉRICA LATINA, "PÁTRIA GRANDE” EM CONSTRUÇÃO: o aporte dos Cristãos libertários

Alder Júlio Ferreira Calado


Nos entrechoques da História, e a despeito dos golpes e retrocessos ultradireitistas, a América Latina e o Caribe emitem sinais alvissareiros de um novo ciclo progressista. As recentes eleições na Colômbia, das quais resultaram vitoriosos Gustavo Petro e Francia Márquez, parecem indicar em nosso continente a tendência de um novo ascenso das forças progressistas. México, Honduras, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Chile e Argentina avançam para um novo tempo. Para o Brasil e o Paraguai, estes eventos constituem um chamamento.. Também, o Uruguai  pode extrair lições desses eventos.


Eis por que, uma vez mais, voltamos a insistir, junto aos jovens das classes populares, especialmente de nossas organizações de base, na necessidade do exercício da memória histórica dos oprimidos.


Deste vez, decidimos tomar como algo especial de reflexão, o Movimento dos Sacerdotes para o Terceiro Mundo e outros eventos conexos da mesma conjuntura.


Compartilhado por milhões de latino-americanos e caribenhos - mulheres e homens -, o sonho de Simón Bolívar, de tornar o novo conjunto de países e de povos a "Pátria Grande”, segue forte e firme, na busca de realização deste sonho. Como dizia Helder Câmara, “um sonho que se sonha só, é somente um sonho. Mas quando compartilhado, torna-se realidade”. 


Com efeito, sobretudo a partir da primeira metade do século XIX, os povos latino-americanos e caribenhos empenharam-se mais fortemente, nas lutas de libertação nacional. No entanto, desde os inícios da colonização, nossas gentes - principalmente os povos originários e os africanos escravizados nunca cessaram de lutar contra o processo de colonização, nas manifestações e movimentos que travaram, desde então. Os sinais e registros são abundantes, neste sentido, já na metade do século XV, são conhecidos os embates protagonizados, na atual República Dominicana, por parte dos franciscanos, dos quais se destaca a figura de Antônio Montesinos, sua resistência firme contra os escravizadores dos povos originários. Ao mesmo tempo, em outros espaços latino-americanos e caribenhos, inclusive no Brasil, registraram-se diversas lutas dos povos indígenas contra os colonizadores. Neste sentido, no que diz respeito ao caso brasileiro, vale a pena rememorar as grandes lutas dos povos Guaranis contra os colonizadores, registros também feitos pelo pesquisador Clovis Lugon, em seu famoso livro “A República Comunista Cristã dos Guaranis”.


Mas, estas lutas de resistência também tiveram como protagonistas diversos segmentos de africanos escravizados na América Latina e no Caribe, inclusive no Brasil. Para mencionar apenas um exemplo, vale a pena destacar as lutas do povo negro desde os Quilombos, em especial o dos Palmares. 


No entanto, quando se toma em consideração o esforço pela independência, melhor dizendo, pela busca de afirmação de sua nacionalidade contra as metrópoles europeias, o tempo mais indicado começa nas primeiras décadas do século XIX, especialmente entre 1808 e 1830, período durante o qual teve lugar a maioria dos processos de separação dos países latino-americanos e do caribe em relação às metrópoles europeias. 


As linhas que seguem tomaram em conta especialmente as lutas de separação política dos países latino americanos e caribenhos de suas ex-metrópoles. É durante este período, e para além dele, que tem lugar mais especial a Figura de Simón Bolivar, a clamar pela construção da “Patria Grande”, sonho compartilhado por diferentes povos do nosso continente. 


Neste longo processo de busca, de unificação dos diversos países latino-americanos e do Caribe - cerca de 40 -, vale a pena situar o papel específico desempenhado pelos cristãos libertários, principalmente a partir dos anos 1960. Este constitui o alvo-mor destas linhas. Neste sentido, cuidamos de caracterizar o contexto de plena ebulição sócio-econômica e política dos povos latino-americanos e do Caribe. Em seguida, cuidamos de destacar, com mais ênfase, o lugar ocupado pelo movimento intitulado “sacerdotes para o Terceiro mundo” com marcante presença e participação na Argentina, principalmente durante os anos de 1960. Este movimento situava-se em um contexto latino-americano e caribenho de enorme efervescência das lutas libertárias. Durante este período que ainda reflete a influência da Revolução Cubana, cujo ápice se dera poucos anos antes (1959), a mover milhares de latino-americanos em busca da realização do sonho de Simón Bolivar e outros parceiros. Para tanto, tratamos de situar os contornos mais fortes da conjuntura latino-americana e caribenha dos anos 60.


Nos anos 60 a América Latina vivia uma onda de ebulição principalmente no chamado Cone Sul. As massas populares, depois de curtirem uma opressão econômica, política e cultural, tratavam de se manifestar, guiadas por quadros importantes da Igreja Católica, em particular, por um numeroso grupo de padres animados pelo esforço de renovação da Igreja em função do Concílio Vaticano II.


A Revolução Cubana, realizada nos anos 50, culminando com a conquista do poder, em 1959, rondava todo o continente Latino Americano e o Caribe. A Classe Dominante tremia e temia por conta do que Cuba pudesse representar para os outros países latino-americanos e do próprio Caribe. Ao mesmo tempo, ao interno da Igreja Católica Romana, vivia-se um tempo de muita esperança, por conta da atitude profética do Papa João XXIII, que, aos 80 anos, teve a coragem de convocar um Concílio Ecuménico - seria o Concílio Vaticano II. Houve uma tensão nas forças conservadoras da Igreja, enquanto para o povo dos pobres crescia a confiança no gesto do bom Papa João, como era chamado. Com efeito, em 1º de janeiro de 1959, um ano após assumir suas funções, o Papa João XXIII convoca o Concílio Vaticano II cuja primeira sessão realiza-se em 1962. De 1962 a 1965, realizou-se, em Roma, este Concílio, do qual participaram em torno de 2500 Bispos, vindos dos diversos continentes, ainda que com maioria de Bispos europeus. O Concílio Vaticano II jogou esperança no continente latino-americano como também nos demais países do então chamado terceiro mundo. Ainda que as decisões do Concílio Vaticano II dissessem mais respeito a uma atualização (“Aggiornamento”) da Igreja em relação a modernidade, alguns documentos conciliares, dentre os 16 (4 constituições, 9 decretos e 3 comunicações) pouco tinham a ver diretamente com a causa dos pobres, o que levaria um de seus participantes, o Bispo Dom Antônio Batista Fragoso, em um vídeo comemorativo do famoso “Pacto das Catacumbas”, realizado em 16 de novembro de 1965, há poucos dias do encerramento do Concílio Vaticano II, declarava que o Concílio tinha feito as pazes com a modernidade, mas não atendeu satisfatoriamente ao interesse dos pobres. Mesmo assim na igreja latino-americana, inclusive na Argentina, aqueles que acompanhavam de perto o desenrolar do Concílio Vaticano II, especialmente os Padres, passaram a extrair dos documentos conciliares muita inspiração ao seu trabalho junto ao povo dos pobres.


Não apenas na Argentina, mas também nos demais países latino-americanos e do Caribe, havia um forte apelo popular por justiça social, diante de uma realidade de escandalosas desigualdades sociais, o que movia parte da Igreja, especialmente os que tinham um compromisso mais forte com as Classes Populares, a assumirem o compromisso de orientarem e de travarem com o povo uma luta por justiça social. Na Colômbia por exemplo, a Classe Dominante continuava sendo, como ainda hoje, uma das mais cruéis do continente. Neste contexto, é que surge a figura profética Camilo Torres, que passa a ter um trabalho profético junto aos jovens universitários. Camilo Torres, ao mesmo tempo, teve uma sólida orientação sociológica, em seus estudos de pós-graduação na Bélgica, onde pontificavam relevantes figuras de intelectuais, a exemplo do sociólogo François Houtart que exerceu considerável influência na trajetória pastoral profética de Camilo Torres. Ao terminar seus estudos de pós-graduação na Bélgica, o padre Camilo Torres volta a atuar cada vez mais radicalmente junto às classes populares, principalmente junto aos estudantes. Com as crescentes desigualdades econômicas, políticas e sociais, as Classes Sociais entendiam ser necessário enfrentar a Classe Dominante, de preferência pelas vias da paz, mas, caso as Classes Dominantes se recusassem a este diálogo, as mudanças deveriam ser feitas de qualquer modo, inclusive pela via da luta armada. Camilo Torres, que gozava de enorme confiança das Classes Populares, passava a radicalizar seu trabalho junto a estas mesmas Classes Populares, de sorte que, já no final de 1965, decide entrar para o exército de libertação nacional (ELN), tendo sido assassinado, em 15 de fevereiro de 1966. Lembremo-nos por outro lado, que Ernesto Che Guevara, um dos comandantes mais estimados da Revolução Cubana, decide deixar o seu país para inaugurar o período de enfrentamento guerrilheiro na Bolívia. A despeito de sua luta, resultou assassinado, na floresta Boliviana, pelas forças militares bolivianas, em 1977. Vê-se, que, portanto, todo o continente latino-americano e caribenho vivia um contexto de enorme efervescência política, o que explica o surgimento na Argentina, do famoso movimento de sacerdotes para o terceiro mundo.





Formação e passos do movimento sacerdotes para o terceiro mundo.


Considerando a conjuntura de efervescência característica da América Latina de então, também na Argentina estes traços se achavam bastante acentuados. A influência do Concílio Vaticano II e possivelmente, também, a do pacto das catacumbas - embora esta última seja menos perceptível nos documentos analisados -, diversos Padres que haviam acompanhado de perto o desenrolar do Concílio Vaticano II, sentiram-se bastante motivados para, não apenas um empenho na renovação eclesial, como também no enfrentamento das profundas desigualdades então reinantes e o compromisso da causa libertadora os pobres.


Nos diversos espaços da Argentina, especialmente em regiões como a de Córdoba, Santa Fé e outras, foram convocados diversos encontros de âmbito nacional, do movimento padres para o mundo, o primeiro encontro realizou-se em Córdoba em 1968. Dele participaram pouco mais de 20 membros desse movimento. O encontro inaugurou a caminhada do movimento. No ano seguinte, 1969, realizou-se o segundo encontro já contando da participação de 18 padres, este fato indica o ascenso em que o movimento estava situado. As atividades destes padres constituíam além de sua atuação no âmbito da paróquia também no chamamento de reuniões e encontros nas periferias e no mundo rural. Tratava-se de rememorar as conclusões do Vaticano II, ao mesmo tempo em que se cuidava de fazer-se uma análise crítica da situação social, econômica e política. Neste sentido, o movimento vai progressivamente contanto com o apoio popular. Insistia-se na busca de uma via socialista, alternativa ao Capitalismo. Uma via, que, no entanto, não se queria, alinhada ao socialismo real, donde a preferência pelo terceiro mundo. O terceiro encontro realizou-se em 1970, além dos 3 últimos, realizados em 1971, 1972 e 1973, este último encontro se deu já num clima de muita tensão por conta da Ditadura Militar então instalada. 


Com relação às lideranças principais para sacerdotes para o terceiro mundo, convém destacar a figura de Padre Carlos Mugica, que acabaria assassinado, em função de sua atuação profético-pastoral. Além do Padre Carlos Mugica, algumas dezenas de padres sofreram perseguições, e alguns experimentaram tortura e assasinato.

Ainda no período áureo deste movimento, vale destacar a iniciativa tomada, em um de seus primeiros encontros, de enviarem aos bispos reunidos na segunda conferência espiscopal latino americana, em Medellín, na Colômbia em 1968, uma carta dirigida aos participantes da conferência, propondo uma conversão profética da Igreja, no sentido de assumir a causa libertadora dos oprimidos. Não apenas por esta iniciativa, mas também com outras semelhantes, o fato é que a conferência de Medellín, acabariam marcada principalmente pela sua “opção pelos pobres”.


Além da influência do Concílio Vaticano II em sua renovação litúrgica pastoral, também no âmbito da realidade social em diálogo com o mundo moderno, também incisiva influência exerceram com o movimento padres para o terceiro  mundo, as experiências proféticas dos padres operários, especialmente na frança, cujas atividades marcaram o compromisso com a causa dos pobres, o que significaria uma inspiração também para os padres do terceiro mundo.


Outro fator decisivo para a atuação de Padres para o terceiro mundo, foi a publicação, em 1967 da Encíclica Social intitulada "Populorum Progressio” (o desenvolvimento dos povos), de autoria do Papa Paulo VI. Este documento, com efeito, suscitou um ânimo renovado nas experiências libertadoras, ao tempo em que a Encíclica fazia ecoar fortes denúncias contra o sistema capitalista, principal fator de empobrecimento também dos pobres da América Latina. Igualmente relevante, enquanto iniciativa inspiradora deste Movimento, foi um documento assinado por 18 bispos latino-americanos, liderados por D. Helder Câmara, publicado em 1967, e no qual vinham uma análise crítica da realidade capitalista, seguida de referências positivas à busca de um socialismo que correspondesse ao espírito do Evangelho, neste documento apareciam fortes elementos argumentativos de apreço a um horizonte socialista, profundamente enraizado nos valores do Evangelho, das primeiras comunidades cristãs, nas quais o princípio maior era a partilha dos bens - “e todos repartiram o pão e não havia necessitados entre eles." (Cf. Atos dos Apóstolos, caps. 2 e 4). Ao mesmo tempo, o documento vinha eivado de princípios das primeiras comunidades cristãs dos primeiros séculos, inclusive, com a contribuição de algumas figuras de teólogos conhecidos como padres da Igreja. Neste sentido, a ênfase se punha na destinação universal dos bens, isto é, Deus criou a Terra e suas riquezas para o conjunto dos seres humanos e viventes, de modo que significa uma usurpação a apropriação de tais bens por uma pequena minoria, provocando a miséria de enormes maiorias. Em um dos documentos do Concílio do Vaticano II, a “Gaudium et Spes”, o documento sobre o mundo de hoje, em seu número 71, afirma que para assegurar sua subsistência para sobreviver à fome, os famintos têm o direito de irem buscar junto aos que têm aquilo que lhes falta. Como se percebe, tratou-se de um documento muito relevante de apoio para os membros do movimento Padres para o Terceiro Mundo.




]Que lições recolher desses eventos?


Na perspectiva da Classe Trabalhadora (devidamente atualizada diante dos desafios de hoje), a elaboração de um plano de ação e de lutas requer “uma análise objetiva da realidade objetiva”.  Entre tantos elementos a serem tomados em conta para tanto, destacamos, por relevante e indispensável, a presença historicamente capilarizada na vida de nossas gentes latinoamericanas, a presença de valores religiosos, em especial os ligados ao Cristianismo ao ponto de um dos nossos marxistas de referência, Michael Lowy, ter afirmado que, na América Latina, a Revolução será feita com os cristãos ou não haverá revolução. 


    Com efeito, não por acaso, ontem e hoje, classes dominantes e dirigentes seguem implementando no continente, como estratégia relevante a brutal perseguição a figuras, grupos de militantes populares que seguem afinados com a Teologia da Libertação e as lideranças e militantes de base desses segmentos.


    O chamado “Marxismo cultural”, de inspiração Gramsciana, vem sendo a principal estratégia usada pelas forças imperialistas, desde os anos 1970. A este respeito, especialmente no que toca aos anos 1970, importa conferir, entre outros, o livro “Catholic Radicals in Brazil (Católicos radicais no Brasil)'', da editora Oxford University Press, datado em 1970. Tais estratégias tornaram-se, fortes meios de repressão, as forças cristãs progressistas do continente. Prova disto é também o famigerado “Relatório Rockefeller”, recomendando especial atenção às atividades realizadas pelos segmentos católicos progressistas, no continente. Enquanto, em relação ao final dos anos 1970/começo dos anos 1980, já na era Reagan, entram em cena, os Documentos Santa Fé I e Santa Fé II, produzidos por uma comissão ligada às forças imperialistas dos EUA, na cidade de Santa Fé, ao sul dos EUA. 


    Estratégias que seguem presentes nos anos mais recentes, inspiradas em grupos e figuras da ultra-direita, a exemplo de Steve Bannon e Olavo de Carvalho, principal mentor dos bolsonaristas. Exercitar a memória histórica dos oprimidos nos dias de hoje, em busca constante da construção da “Pátria Grande” (termo, ainda que não utilizado por Simón Bolívar, nele se inspira), que possamos por em prática, no campo e nas periferias urbanas o processo formativo contínuo, a ser assumido principalmente por nossas organizações de base, cuja força mais significativa repousa nos Movimentos Sociais Populares. Uma dessas tarefas de base pode ser a de revisitarmos, tendo como propósito o enfrentamento exitoso dos atuais desafios, revisitarmos os documentos de Rockefeller e Santa Fé I e II, além do livro recém publicado por Giuliano da Empoli, "Engenheiros do caos: como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições", que se constitui em uma análise sobre a barbárie provocada pela ultra direita, em nossos dias.





João Pessoa, 02 de julho de 2022.

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