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O que está acontecendo na Igreja?

Sob o tema acima exposto, confira a conferência de José Comblin na Universidade Centro-Americana José Simeón Cañas (UCA), de San Salvador, em 18 de março de 2010 e foi transcrita por Enrique A. Orellana. Está publicada no sítio "Atrio, 17-09-2010". A tradução é do CEPAT.

 

"Boa tarde a todas e todos!

 

             Não é a primeira vez que falo neste lugar, mas agradeço muito a amizade de Jon Sobrino. Nós nos conhecemos há muito tempo e eu o estimo como uma das cabeças mais lúcidas deste tempo que renovou completamente a Cristologia.

 

             Bom... As perguntas de ontem me deram a impressão de que em muitas pessoas há um certo desconcerto em relação à situação atual da Igreja. Ou seja, uma sensação de insegurança. Como dizia Santa Teresa, por “não saber nada a respeito, que nada provoque temor”. Quando era jovem eu conheci algo semelhante e, talvez, pior. Era o pontificado de Pio XII. Ele havia condenado todos os teólogos importantes, havia condenado todos os movimentos sociais importantes, por exemplo, a experiência dos padres operários na França, Bélgica e outros países. Aí nós, jovens seminaristas e depois jovens sacerdotes, estávamos mais que desconcertados, perguntando-nos: mas, ainda há futuro? Eu me lembro que naquela época tinha lido uma biografia de um autor austríaco do papa Pio XII. E aí contava algumas palavras que havia escrito o Pe. Liber, jesuíta, professor de História da Igreja na Gregoriana. O Pe. Liber era confessor do Papa. Sabia tudo o que passava na cabeça de Pio XII e então dizia: “Hoje a situação da Igreja católica é igual a um castelo medieval, cercado de água, levantaram a ponte e jogaram as chaves na água. Já não há como sair (risos). Ou seja, a Igreja está cortada do mundo, não tem mais nenhuma possibilidade de entrar”. Isso foi dito pelo confessor do Papa, que tinha motivos para saber essas coisas. Depois disso veio João XXIII e aí, todos os que haviam sido perseguidos, de repente são as luzes no Concílio e de repente todas as proibições são levantadas. Aí renasceu a esperança. Digo isto para que não se perturbem. Algo virá. Algo virá que não se sabe o que, mas algo sempre acontece.

 

            Como explicar essas situações que ainda podem recomeçar? Porque estamos nos aproximando da fase final da cristandade. Já faz muitos séculos que anunciaram a morte da cristandade... que está agonizando já faz cerca de 200 anos, mas ainda pode continuar sua agonia durante algumas décadas ou alguns anos. Ou seja, deixou de ser a consciência do mundo ocidental. Deixou de ser a força que anima, estimula, esclarece, explica a fonte da cultura, da economia, de tudo o que foi durante o tempo da cristandade. Tudo isso foi sendo destruído progressivamente desde a Revolução Francesa e aqui desde a independência, desde a separação do império espanhol. Então, pouco a pouco, apareceram muitos profetas que disseram que a cristandade morreu... já faz 200 anos. Mas agora creio que a cristandade está entrando em suas fases finais. Querem um sinal? A Encíclica Caritas et Veritate. Não sei quantas pessoas aqui leram a Encíclica. Se se vê a repercussão que teve no mundo: impressionante silêncio... Talvez silêncio respeitoso, mas mais provavelmente silêncio de indiferença. A doutrina social da Igreja não importa mais a ninguém, que também deixou de se interessar pelo que acontece na realidade concreta.

 

           Há alguns anos, um sociólogo jesuíta muito importante, o Pe. Calvez, que teve um papel importantíssimo na criação e manutenção da Doutrina Social da Igreja, publicou um livro intitulado: “Os silêncios da Doutrina Social da Igreja”. Ainda está em silêncio. Deixa de entrar com força nos problemas do mundo atual. Fica com teorias tão vagas, tão abstratas, tão genéricas... A carta Caritas in Veritate poderia ser assinada pelo Fundo Monetário Internacional (risos), pelo Banco Mundial... sem nenhum problema. Não há absolutamente nada que incomode esse pessoal. Então, para quê? Esse é o sinal.

 

          Querem outro sinal? A Conferência de Aparecida disse muitíssimas coisas muito boas. Quer transformar a Igreja em uma missão, passar de uma Igreja de “conservação” a uma Igreja de “missão”. Só que pensa que isso será feito pelas mesmas instituições que não são de missão, mas de conservação. Isso será feito pelas dioceses, pela paróquia, pelos seminários, pelas Congregações Religiosas. Estes aqui, de repente e por milagre, vão se transformar em missionários. Já se passaram três anos e o que aconteceu em sua diocese? Como se aplicou a opção pelos pobres? Não sei como é aqui, mas no Brasil não vejo muita transformação. Ou seja, a cristandade está se dissolvendo progressivamente, mas o problema é o depois. O que vem depois? Como? Daí a insegurança porque não sabemos o que vem depois. Isto aconteceu muitas vezes na história e ainda vai acontecer provavelmente muitas vezes. É preciso aprender a resistir, a suportar, a não se deixar desanimar ou perder a esperança pelo que vem acontecendo.

 

           O que acontece é que em Roma não estão convencidos de que a cristandade está morta. Acreditam que as Encíclicas iluminam o mundo, que as instituições eclesiásticas iluminam e conduzem o mundo. Ou seja, é um mundo fechado, que de fato vivem em um castelo medieval, cercado de água. E então, o que acontece? Vamos ver como interpretar, como ver o que está acontecendo. E então ver qual é o “método teológico” que convém para isso.

 

 

O Evangelho vem de Jesus Cristo. A religião não vem de Jesus Cristo

 

          É preciso partir de uma distinção básica que agora vários teólogos já propuseram entre o Evangelho e a religião. O Evangelho vem de Jesus Cristo. A religião não vem de Jesus Cristo. O Evangelho não é religioso. Jesus não fundou nenhuma religião. Não fundou ritos, não ensinou doutrinas, não organizou um sistema de governo. Nada disso. Ele se dedicou a anunciar, a promover o Reino de Deus. Ou seja, uma mudança radical de toda a humanidade em todos os seus aspectos. Uma mudança, e uma mudança cujos autores serão os pobres. Dirige-se aos pobres pensando que somente eles são capazes de agir com essa sinceridade, com essa autenticidade para promover um mundo novo. Seria essa uma mensagem política? Não é política no sentido de que propõe um plano, uma maneira... não, para isso a inteligência humana é suficiente; mas como meta política, porque isto é uma orientação dada a toda a humanidade.

 

           E a religião? Aah! Jesus não fundou uma religião, mas seus discípulos criaram uma religião a partir dEle. Por quê? Porque a religião é algo indispensável aos seres humanos. Não se pode viver sem religião. Se a religião atual aqui se desintegra... Há 38.000 religiões registradas nos Estados Unidos! Ou seja, não faltam religiões, elas aparecem constantemente. O ser humano não pode viver sem religião, mesmo que se afaste das grandes religiões tradicionais. Então, a religião é uma criação humana. Entre a religião cristã e as demais religiões, a estrutura é igual. É uma mitologia. Assim como há uma mitologia cristã, há uma mitologia hinduísta, xintoísta, confucionista. Isso é parte indispensável para a humanidade. Ou seja, como interpretar todo o incompreensível da humanidade pela intervenção de seres com entidades sobrenaturais, fora deste mundo, que estão dirigindo esta realidade.

 

           Em segundo lugar, uma religião são ritos. Ritos para afastar as ameaças e para acercar-se dos benefícios. Todas as religiões têm ritos. E todas têm pessoas separadas, preparadas, para administrar os ritos, para ensinar a mitologia. Isto é comum a todas. Então, isto devia acontecer com os cristãos também. Devia acontecer. Como poderiam viver sem religião?

 

          Como começou essa religião? Deve ter começado quando Jesus se transformou em objeto de culto. O que aconteceu bastante cedo, sobretudo entre os discípulos que não o conheceram, que não haviam vivido com ele, que não haviam estado próximos dele. Então, a geração seguinte ou aqueles que viviam mais distantes, mais afastados, para eles Jesus se transformou em objeto de culto. Com isso se desumanizou progressivamente. O culto de Jesus vai substituindo o seguimento de Jesus. Jesus nunca havia pedido aos discípulos um ato de culto. Nunca havia pedido que lhe oferecessem um rito... nunca. Mas queria o seguimento, seu seguimento. Essa dualidade começa a aparecer cedo. 30 anos, 40 anos depois da morte de Jesus, já aparece com força suficiente para que Marcos escrevesse em seu Evangelho precisamente para protestar contra essas tendências de desumanização, ou seja, de fazer de Jesus um objeto de culto. Este Evangelho é precisamente para recordar uma palavra de profeta: Não! Jesus era isso. Jesus fez isso, viveu aqui neste mundo! Viveu aqui nesta terra.

 

          Com o desenvolvimento da religião cristã que se fez – aqui problema para os teólogos –, progressivamente essa tentação reapareceu. Nasceu um começo de doutrina, o Símbolo dos Apóstolos. E o que diz o Símbolo dos Apóstolos sobre Jesus? Aah... diz que nasceu e morreu. Nada mais. Como se as outras coisas não tivessem importância, como se a revelação de Deus não fosse justamente a própria vida de Jesus, seus atos, seus projetos, todo o seu destino terrestre. Essa é a revelação, mas isso já vai se perdendo de vista. Os Símbolos de Niceia e Constantinopla, da mesma maneira: Cristo nasceu e morreu. O Concílio de Calcedônia define que Jesus tem uma natureza divina e uma natureza humana. Mas, o que é uma natureza? Um ser humano não é uma natureza. Um ser humano é uma vida, é um projeto, é um desafio, é uma luta, é uma convivência em meio a muitos outros. Isso é o fundamental se queremos fazer o seguimento de Jesus.


A religião: distinção entre o sagrado e o profano

 

          Progressivamente, aparece a partir dos primeiros Concílios um distanciamento entre a religião que se forma. Com Niceia e Constantinopla já há um núcleo de ensinamento e de teologia e a Igreja vai se dedicar a defender, promover, aumentar essa teologia. Já se organizaram as grandes liturgias de Basílio e outros, e já se organizou um clero. O clero como classe separada é uma invenção de Constantino. Até Constantino não havia distinção entre pessoas sagradas e pessoas profanas. Eram todos leigos. Porque Jesus apartou a classe sacerdotal e não tinha previsto nenhuma maneira que aparecesse outra classe sacerdotal, porque todos são iguais. E não há pessoas sagradas e pessoas não sagradas, porque para Jesus não há diferença entre sagrado e profano. Tudo é sagrado ou tudo é profano.

 

          Agora, na religião há uma distinção básica entre sagrado e profano. Em todas as religiões. E há um clero que se dedica ao que é sagrado. E os outros que estão no profano, na religião são receptores, não são atores. Não têm nenhum papel ativo. Para ter um papel ativo é preciso ser realmente consagrado. Isso começa no tempo de Constantino.

 

          E a partir daquilo vão aparecer duas linhas na história cristã. Os que, como o Evangelho de Marcos quer recordar: Não, Jesus veio para mostrar o caminho, para que o sigamos. Isso é o básico, o fundamental. Uma linha que vai renovar, aplicar em diversas épocas históricas o que foi a vida de Jesus e como ele o ensinou. E em toda a história podemos seguir. Claro que não sabemos tudo, porque a grande maioria dos que seguiu o caminho de Jesus foram pobres, dos quais nunca se falou nos livros de história e, portanto, não deixaram nenhum documento. Mas há pessoas que deixaram documentos e com isso podemos acompanhar onde, na história da Igreja cristã, aparece o Evangelho. Onde se buscou primeiramente a vivência do Evangelho. Os que buscaram radicalmente o caminho do Evangelho foram sempre minorias, como dizia Helder Câmara, “minorias abraãmicas”.

 

         A maioria está no outro pólo, na religião. Ou seja, dedicando-se à doutrina. Ensinando a doutrina, defendendo a doutrina contra os hereges e as heresias... Essa foi uma das grandes tarefas, praticar os ritos e formar a classe sagrada, a classe sacerdotal. Isso nos leva a uma distinção que vai se manifestar em toda a história. O pólo “Evangelho” está em luta com o pólo “religião” e “religião” com o pólo “Evangelho”. Em toda a história. Toda a história cristã é uma contradição permanente e constante entre aqueles que se dedicam à religião e aqueles que se dedicam ao Evangelho. Claro que há intermediários e assim não há pólos totais. Mas na história há visivelmente duas histórias, dois grupos que se manifestam. A história oficial: quando eu era jovem nos davam aulas de História da Igreja que era “história da instituição eclesiástica” e ali só se falava da religião, supondo que a religião era a introdução ao Evangelho. Mas isso é uma suposição: que tudo o que nasceu no sistema católico vem de Jesus, como se dizia na teologia tradicional em tempos da cristandade, que tudo o que existe na Igreja Católica Romana, ao final, vem de Jesus. Com muitos malabarismos teológicos se consegue mostrar que tudo tem finalmente sua raiz em Jesus. Não têm sua raiz em outras religiões, em outras culturas. Como se os cristãos que se convertem à Igreja fossem totalmente puros de toda cultura e toda religião. Todos trazem sua cultura e sua religião, e introduzem em sua vida cristã elementos que são de sua religião e cultura anterior e por isso resulta uma religião que é sempre ambígua, complexa. É inevitável, porque os seres humanos que entram na Igreja não são anjos. Eles estão carregados de séculos e séculos de história e de transmissão cultural e tudo isso entra, naturalmente, na Igreja. Daí uma oposição que em matéria política, por exemplo, se mostra claramente. Se diz: o Evangelho procede de Deus e, portanto, não pode mudar. A religião é criação humana, portanto, pode e deve mudar segundo a evolução da cultura, das condições de vida dos povos em geral. Se a religião fica apegada ao seu passado, ela é pouco a pouco abandonada a favor de outra religião mais adaptada. O que é muito compreensível.

 

          O Evangelho é vivido na vida concreta, material, social. A religião vive em um mundo simbólico. Tudo é simbólico – doutrina, ritos, sacerdotes... –, todos são entidades simbólicas, que não entram na realidade material. O Evangelho é universal, porque não traz nenhuma cultura e não está associado a nenhuma cultura, a nenhuma religião. As religiões estão sempre associadas a uma cultura. Por exemplo, a religião católica atual está ligada à subcultura clerical romana que a modernidade marginalizou, que está em plena decadência porque seus membros não quiseram entrar na cultura moderna. O Evangelho é renúncia ao poder e a todos os poderes que existem na sociedade. A religião busca o poder e o apoio do poder em todas as formas de poder. E são tão visíveis!

 

          O poder... Lembro que na época da prisão dos bispos em Riobamba o núncio dizia: “se a Igreja não tem o apoio dos governantes, não pode evangelizar” (risos). Pode-se pensar o contrário: que caso se tenha o apoio dos poderes será difícil evangelizar. Mas essa é uma mentalidade que ainda é remanescente na cristandade entre a Igreja fundida em uma realidade político-religiosa e então naturalmente estavam unidas todas as autoridades: o clero e o governo; o clero e o Exército – tudo unido. Renunciar a isso é muito difícil. Renunciar à associação com o poder é muito difícil. Vou dar um exemplo. Meu atual bispo na Bahia é um franciscano, se chama Luis Flavio Cappio. Ficou famoso no Brasil por duas greves de fome que fez para protestar contra um projeto faraônico do governo, baseado em uma imensa mentira. Não há tempo para contar toda a história, mas se tornou conhecido e foi convidado para o Kirchentag da Igreja alemã. Depois do convite falou em várias cidades da Alemanha. Um grupo se aproximou dizendo que vinham para entregar-lhe uma doação, uma ajuda para as suas obras. E era bastante: cerca de 100 mil dólares. Ele perguntou: “De onde vem esse dinheiro?” Disseram-lhe que são algumas empresas, alguns executivos que o recolheram. Então disse: “Não aceito. Não quero aceitar o dinheiro que foi roubado dos trabalhadores, dos compradores de material”. Não aceitou nenhuma aliança com o poder econômico. Eu não sei quantos no clero não aceitariam (aplausos). Esse bispo é um franciscano igual a São Francisco. Toda a sua vida foi assim. Por isso fui morar ali para santificar-me um pouquinho em contato com uma pessoa tão evangélica...

 

          Então, como nasceu a Igreja? A Igreja de que se fala: essa realidade histórica, concreta de que temos experiência. Para o povo em geral a Igreja é o Papa, os bispos, os padres, as religiosas, religiosos... esse conjunto institucional de que se fala e que provoca também tanta incerteza, como vimos. Como nasceu a Igreja? Jesus não fundou nenhuma igreja. O próprio Jesus se considerava um judeu. Era o povo de Israel renovado e os primeiros discípulos também; Os doze apóstolos são os patriarcas da Igreja do Israel renovado. A primeira consciência era que a continuação de Israel, a perfeição, a correção de Israel. Mas uma vez que o Evangelho penetrou no mundo grego, aí Israel não significava muitas coisas para eles e então Paulo inventa outro nome. Dá às comunidades que funda nas cidades o nome de “ekklesia”, o que se traduziu por “igreja”. O que é a ekklesia? O único sentido que tem no grego é “a assembleia do povo reunido que governa a cidade”. Na prática eram as pessoas mais poderosas, mas enfim é que na cidade grega o povo se governa a si mesmo e o faz em reuniões que são “ecclesias”. Paulo não dá nenhum nome religioso às comunidades; os vê como um grupo destinado a ser a animação. A mensagem de transformação de todas as cidades, de tal maneira que estão constituindo o começo de uma humanidade nova. E é uma humanidade onde todos são iguais, todos governam a todos. Depois vem a Carta aos Efésios em que se fala da Igreja como tradução de “kahal” dos judeus, ou seja, é o novo Israel. E a ecclesia é aí também o novo Israel. Ou seja, todos os discípulos de Jesus unidos em muitas comunidades, mas não unidos institucionalmente, mas unidos pela mesma fé. Todos constituem a “ecclesia”, a grande Igreja que é o corpo de Cristo. Ainda não existem instituições.

 

         Mas, naturalmente, não podia continuar assim. Os judeus que aceitaram o cristianismo não abandonaram todos o judaísmo. E quando o número de cristãos cresceu, o número de comunidades, ali começaram a penetrar algumas estruturas. No tempo de Paulo ainda não há presbíteros, mesmo que São Lucas diga o contrário. Mas São Lucas não tem nenhum valor histórico; isso todo o mundo já sabe. Atribui a Paulo o que se fazia em seu tempo. Então imagina que Paulo fundou presbíteros, conselhos presbiterais. Como se justificaria um bispo sem ordenar sacerdotes? Então, parece evidente um começo de separação ainda muito simples, porque ainda não há sacralidade, não há nada sagrado. Os presbíteros não são sagrados, assim como os presbíteros das sinagogas não eram sagrados. Eles tinham uma função, uma missão de governo, de administração, mas não uma função ritual, ou uma função de ensino de uma doutrina.

 

         Depois apareceram os bispos. No final do século II se estima que o esquema episcopal esteja generalizado, mas demorou bastante. Clemente de Roma, quando publica e escreve sua Carta aos Coríntios, diz “presbíteros”, o que não é bispo. Ainda em Roma não há bispo, só presbíteros. Mas se organizou o esquema episcopal. É provável que para as lutas contra as heresias, contra o gnosticismo, se necessitasse de uma autoridade mais forte, para poder enfrentar o gnosticismo e todas as novas religiões sincréticas que aparecem naquele tempo.

 

          E a Igreja como instituição universal, quando aparece? Houve, no século III, Concílios regionais: bispos de várias cidades que se reuniam. Mas uma entidade para institucionalizar tudo não existia. Quem inventou esta Igreja universal foi o imperador Constantino. Ele reuniu todos os bispos que havia no mundo com viagens pagas por ele, alimentação também paga por ele, e toda a organização do Concílio foi dirigida pelo imperador e os delegados do imperador. Isto constitui um precedente histórico. Até hoje não estamos livres disso: que a Igreja universal como instituição tenha nascido com o imperador.

 

          Depois, na história ocidental caiu o imperador romano e então progressivamente o papa conseguiu chegar à função imperial. Houve muitas lutas na Idade Média entre o papa e o imperador, mas sempre o papa se estimava superior ao imperador. Nas cruzadas, o papa era generalíssimo de todos os exércitos cristãos. Era uma personalidade militar – comandante em chefe do exército cristão. E dentro da linha dos Estados pontifícios, isto ainda se mantém.

 

          Quando o papa perdeu o poder temporal, reforçou seu poder sobre as Igrejas: e governa as igrejas como um imperador, ou seja, todos os poderes são centralizados em uma única mão e com todas as vantagens de uma corte. Por que se não há nada de democracia na Igreja, quem são aqueles que orientam o papa? A corte! Os cortesãos, os que estão ali próximos. Claro que ele não pode fazer tudo, mas enfim uma corte separada do povo cristão. Ainda estamos sofrendo as consequências daquilo. O Papa Paulo VI disse em alguns momentos que realmente teria que mudar a função atual do Papa, ou seja, o que o Papa faz. João Paulo II na “Unum sint” disse também que é preciso dar-se conta de que o grande obstáculo no mundo de hoje é essa concentração de todos os poderes no Papa. Seria preciso encontrar uma outra maneira de exercer isso. Isso para dizer que tudo isto pertence à religião.

 

 

Tarefa da teologia: no Evangelho e na religião

 

         A partir disso, qual é a tarefa da teologia? É complexa, justamente porque tem uma tarefa no Evangelho e uma tarefa na religião. A teologia foi durante séculos a ideologia oficial da Igreja. Seu papel era justificar tudo o que a Igreja diz e faz com argumentos bíblicos, com argumentos da tradição, liturgia, e um monte de coisas que eu aprendi quando estava no seminário. Claro que não acreditava nisso (risos), mas a maioria ainda crê nisso. Então, o que acontece?

 

 

Primeira tarefa: o que diz o Evangelho?

 

         Primeira tarefa: o que diz o Evangelho? O que é de Jesus? O que é penetração do judaísmo, de outra cultura, de outro tipo de religião? O que vem de Jesus segundo o Novo Testamento? Todo o Novo Testamento não vem de Jesus? Não, as Epístolas pastorais que falam, por exemplo, dos presbíteros, isso não vem de Jesus. Então, a tarefa da teologia consistirá em dizer o que é de Jesus, o que realmente quis, o que realmente fez e em que consiste realmente o seguimento de Jesus.

 

         Vendo a história, quais foram as manifestações, onde, em formas diferentes – porque as situações culturais eram diferente –, onde podemos reconhecer a continuidade dessa linha Evangélica? Porque se quisermos penetrar no mundo de hoje e apresentar o cristianismo ao mundo de hoje, tudo o que é religioso não interessa. O que pode interessar é justamente o Evangelho e o testemunho evangélico. Ninguém vai se converter pela teologia. Você pode fazer todas as melhores aulas, ninguém vai se fazer cristão por causa da teologia. Por isso, me pergunto: por que nos seminários se crê que a formação sacerdotal é ensinar a teologia? Eu não entendo, não entendo. Não há outra coisa necessária para evangelizar? Não é muito mais complexo? Por isso faz 30 anos que decidi, na presença de Deus, nunca mais trabalhar em seminários (risos).

 

         Então, a linha evangélica é essa – São Francisco. São Francisco era um extremista. Não queria que seus irmãos tivessem livros: nada de livros. Com o Evangelho basta, não se necessita nada mais. Ele próprio dizia: “Eu, o que ensino, não aprendi de ninguém, nem do papa; o aprendi de Jesus diretamente, por seu Evangelho”. Bom, isso é o que pode convencer o mundo de hoje que está em uma perturbação completa e que se afasta sempre mais das Igrejas institucionais antigas, tradicionais. Quase todas as grandes religiões nasceram entre os anos 1.000 e 500 antes de Cristo, salvo o Islã que apareceu depois, mas que é um ramo da tradição judeu-cristã.

 

 

O que fazer com a religião?

 

         Segundo, a religião. O que fazer com a religião? É preciso examinar em todo o sistema de religião, o que ajuda, o que realmente ajuda a entender, a compreender, a agir segundo o Evangelho. Isso terá nascido por inspiração do Espírito em monges, por exemplo? Se você olha a vida dos monges do deserto no Egito, isso não é uma mensagem. Não é uma mensagem e também não vem do Evangelho. Ou seja, muitas coisas vêm não se sabe de que tradição, talvez pode ter sido do budismo ou outras coisas assim. Então, examinar o que é o que ainda vale hoje, e sinceramente.

 

          Jesus não instituiu 7 sacramentos. Até o século XII se discutia se eram 10, 7, 5, 9, 4. Não havia acordo. Finalmente, decidiram que havia 7. Bom, por motivos dos 7 dias do Gênesis, 7 planetas, o número 7... mas há coisas que visivelmente já não falam para as pessoas de hoje. Por exemplo, o sacramento da penitência com confissão a um sacerdote. Quantos se confessam atualmente? Há 20 anos, eu atendia na Semana Santa, em uma paróquia popular, 2.000 confissões, e o pároco outras tantas. Atualmente, 20, 30, ou seja, as pessoas já não respondem mais. Isso foi definido no século XII, XIII. Por que manter algo que já não tem nenhum significado e, ao contrário, provoca muita recusa? Ou seja, que alguém necessite falar com alguém, que o pecador goste de falar com alguém, mas não justamente ao sacerdote. Há muitas pessoas, muitas mulheres, que podem exercer esse ofício muito melhor, com mais equilíbrio, sem atemorizar como fazem os sacerdotes. Isso é uma coisa.

 

         Mas há um monte de coisas que é necessário revisar porque não tem futuro. É inútil querer defender ou manter algo que já é obstáculo para a evangelização e que não ajuda absolutamente em nada. Nas liturgias há muitas coisas que mudar. A teoria do sacrifício foi introduzida pelos judeus, naturalmente. No templo se oferece sacrifícios, os sacerdotes são pessoas sagradas que oferecem o sacrifício. Toda essa teoria, atualmente não significa absolutamente nada. Que o padre seja dedicado ao sagrado para oferecer o sacrifício e que a Eucaristia seja um sacrifício, tudo isto vem de Jesus? Ah, não vem de Jesus. Então, é preciso ver se isso vale ou não vale. Para que manter algo que não vale?

 

         E depois há também a outra parte: o que não ajuda, o que tem sido infiltração de outras tendências, outras correntes. Por exemplo, a vida ascética dos monges irlandeses. A Irlanda foi a ilha dos monges. Ali os bispos não tinham autoridade. Serviam apenas para ordenar sacerdotes, mas para as outras coisas podiam descansar. Quem mandava eram os monges. Os mosteiros eram os centros, o que é a diocese atualmente. Esses monges irlandeses viviam uma vida ascética, mas tão extraordinariamente desumana para nós que isso é impossível que venha de Jesus, é impossível que isso ajude, porque esses homens ali eram super-homens, mas não existem mais homens assim hoje. Um exercício de penitência que faziam, por exemplo, era entrar no rio – na Irlanda os rios são frios – e ficar nu para rezar todos os salmos (risos)... Essa maneira de entender a vida, não, não devemos considerar que isso seja cristão. Também não é marca de santidade. Não é assim que a santidade se manifesta. Examinar tudo o que vem de lá.

 

         Todas as congregações femininas sabem o quanto é preciso lutar para mudar costumes, tradições que não são evangélicos. Quantos debates! Eu conheço uma série de congregações femininas e quanto tempo se gasta em discussões, disputas entre aquelas que querem conservar tudo e aquelas que querem abandonar o que não serve mais e encontrar outro modo de viver mais adaptado à situação atual! Então, a tarefa da teologia, claro que é mudar, isso muda a tradição, deixa de ser a ideologia de todo o sistema romano, mas essa não tem futuro. Esse tipo de teologia já faz tempo que foi progressivamente abandonado.

 

         Na América Latina apareceu algo. Conhecemos um novo franciscanismo, ou seja, uma nova etapa, mas radical, de vida evangélica. Quando nasceu? Falei dos bispos que participaram disso e que animaram Medellín e da opção pelos pobres, dos santos padres da América Latina. E vocês os conhecem. Se for preciso marcar a origem do novo evangelismo da Igreja latino-americana, eu diria – não se esqueçam – dia 16 de novembro de 1965. Nesse dia, em uma catacumba de Roma, 40 bispos, a maioria latino-americanos, incitados por Helder Câmara, se juntaram e assinaram o que se chamou de “Pacto das Catacumbas”. Ali se comprometeram a viver pobres, na alimentação. Se comprometeram e, de fato o fizeram depois, uma vez que chegaram às suas dioceses. E depois, priorizar em todas as suas atividades o que é dos pobres, ou seja, deixando muitas coisas para se dedicar prioritariamente aos pobres e uma série de coisas que vão no mesmo sentido. Foram eles que animaram a Conferência de Medellín. Ou seja, nasceu aqui.

 

         E tiveram um contexto favorável. O Espírito Santo já naquele tempo havia suscitado uma série de pessoas evangélicas. As Comunidades Eclesiais de Base já tinham nascido. Já havia religiosas inseridas nas comunidades populares. Mas, eram poucos e se sentiam um pouco marginalizados no meio dos outros. Medellín lhes deu como que legitimidade e ao mesmo tempo uma animação muito grande, e se expandiu. Foi toda a Igreja latino-americana? Claro que não. Sempre é uma minoria. Um dia, me lembro, um jornalista perguntou ao cardeal Arns – um santo, com quem vivemos muito boas relações de amizade: “você, senhor cardeal, aqui em São Paulo tem muita sorte, toda a Igreja se fez Igreja dos pobres, as monjas todas a serviço dos pobres, que coisa magnífica!”. Aí, Dom Paulo disse: “Sim, pois, aqui em São Paulo 20% das religiosas foram às comunidades pobres; 80% ficaram com os ricos”. Era muito. Atualmente, não há 20%.

 

         Isto foi uma época de criação, uma dessas épocas em que há, às vezes, na história com uma efusão muito grande do Espírito. Mas temos que viver essa herança. É uma herança que é preciso manter, conservar preciosamente porque isso não vai reaparecer. Às vezes me perguntam: Por que hoje os bispos não são como naquele tempo? Porque aquele tempo foi uma exceção, ou seja, na história da Igreja é exceção. De vez em quando o Espírito Santo manda exceções.

 

         E quem vai evangelizar o mundo de hoje? Para mim, são os leigos. E já aparecem muitos grupinhos de jovens que justamente praticam uma vida muito mais pobre, livre de toda organização exterior, vivendo em contato permanente com o mundo dos pobres. Já existem. Haveria mais se se falasse mais, se fossem mais conhecidos. Pode ser uma tarefa também auxiliar da teologia: divulgar o que está realmente acontecendo, onde o Evangelho está sendo vivido neste momento, para dá-lo a conhecer, para que se conheçam mutuamente, porque do contrário podem perder ânimo ou não ter muitas perspectivas. Uma vez que se unam, formem associações, cada qual com sua tendência, seu modo de espiritualidade. Não espero muito do clero. Então é uma situação histórica nova.

 

         Mas acontece que os leigos deixaram de ser analfabetos; isso já faz tempo. Eles têm uma formação humana, uma formação cultural, uma formação de sua personalidade que é muito superior ao que se ensina nos seminários. Ou seja, têm mais preparação para agir no mundo, mesmo que não tenham muita teologia. Se poderia dar mais teologia, mas isso é outro assunto. Agora, não vamos pensar que amanhã quem vai colocar em prática o programa de Aparecida serão os sacerdotes. Eu não conheço tudo, mas levando em conta os seminários que eu conheço, as dioceses que eu conheço, seriam necessários 30 anos para formar um clero novo. E quem vai formá-lo? Para os leigos é diferente. Há muitíssimas pessoas dispostas, e pessoas com formação humana, com capacidade de pensar, de refletir, de entrar em relação e contatos, de dirigir grupos, comunidades... Mas muitos ainda não se atrevem, não se atrevem. Mas aí está o futuro.

 

         Para terminar, uma anedota: me chamaram para ir a Fortaleza, no nordeste do Brasil. Atualmente, Fortaleza é uma cidade muito grande – um milhão de habitantes. A Santa Sé havia afastado, marginalizado o cardeal Aloísio Lorscheider, mandando-o ao exílio em Aparecida, que é um lugar de castigo para os bispos que não agradam. Então, veio um sucessor, Dom Cláudio Hummes, que agora é cardeal em Roma. Cláudio Hummes suprimiu tudo o que havia de social na diocese, despediu todos: 300 pessoas com a longa trajetória de serviço, com capacidade humana. Um dia me chamaram: eram 300, chorando, lamentando: “e agora não podemos fazer nada. E agora, o que vai acontecer?”. Eu lhes disse: “mas, vocês são pessoas perfeitamente humanizadas, desenvolvidas, com uma personalidade forte. Tiveram êxito em sua família, tiveram êxito em suas carreiras, em seus trabalhos profissionais. Do que agora se preocupam se o bispo quer ou não quer? Por que se preocupam se o pároco quer ou não quer? Vocês têm formação suficiente e a capacidade. Por que não agem, não formam uma associação, um grupo, de forma independente? Porque o Direito Canônico – o que muitos católicos não sabem – permite a formação de associações independentes do bispo, independentes do pároco. Isso não se ensina muito nas paróquias, mas é justamente algo que é importante. Então, vocês podem muito bem reunir 4, 5 pessoas para organizar um sistema de comunicação, um sistema de espiritualidade, um sistema de organização de presença na vida pública, na vida política, na vida social: 300 pessoas com esse valor. Se paga, tem que pagar a 5, cada um vai gastar nem sequer 2% do que ganha, ou seja, podem muito bem manter 5 pessoas dedicadas a isso. E vão escolhê-los entre 25 e 30 anos porque essa é a época criativa. Até os 25 o ser humano se busca. A partir deste momento termina seus estudos e já conseguiu um trabalho. Então já quer definir sua vida: estes são os que têm capacidade de inventar. Todas as grandes invenções se deram por gente com essa idade”. Mas não o fizeram. Por quê? O que acontece? Por que tanta timidez? “Vocês que são tão capazes no mundo, na Igreja nada!” Não se sentiam capazes, necessitavam do bispo que lhes dissesse o que fazer, necessitam de sacerdotes que lhes digam o que fazer. Como é possível? Certamente, não se lhes ensinou. Podem ser adultos na vida civil e crianças na vida religiosa.

 

           Mas nós podemos! Nós podemos fazê-lo e multiplicá-lo em todas as regiões que vamos conhecer. Então, o futuro depende de grupos de leigos semelhantes, que já existem mesmo que ainda estejam muito dispersos. O futuro está aí, é tarefa de todos, começando pelos jovens. No Brasil há neste momento seis milhões de estudantes universitários. Dois milhões, são de famílias pobres – são pobres os que ganham menos de três salários mínimos, porque com menos disso não se pode viver decentemente. Dois milhões. E qual é a presença do clero? Pouquíssima. Alguns religiosos. Das dioceses? Nada. E ali está o futuro. São jovens que estão descobrindo o mundo. Claro, há alguns que entram no mundo das drogas, que se corrompem, mas é uma minoria. Ou seja, o conjunto são pessoas que querem fazer algo na vida. Se não conhecem o Evangelho não vão viver como cristãos. É preciso explicar, mas não explicar com cursos de teologia, mas explicar fazendo, participando de atividades que de fato são realmente serviços aos pobres. Isso é possível fazer.

 

          Tarefa da teologia. Então será preciso mudar um pouquinho: menos acadêmico, mais orientado para o mundo exterior... com todos os que não estão mais na rede de influxo da Igreja, que não recebem. Mas, presença nisso. E uma teologia que se possa ler, sem ter formação escolástica, porque anteriormente se não se tinha formação aristotélica não se podia entender nada dessa teologia tradicional. Bom, a filosofia aristotélica morreu, ou seja, os filósofos do século XX a enterraram. Agora temos liberdade para ver no mundo como nos abrimos.

 

          Obrigado pela atenção de vocês!"  (aplausos).

 

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