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DOM OSCAR ROMERO: EXEMPLO DE CRISTÃO (parte 1)

 

Genildo Santana

 

São Romero da América, ninguém fará calar tua última homilia!”

Dom Pedro Casaldáliga

 

Primeiro explico o título desse artigo. Não escolhi títulos como Profeta, Mártir ou mesmo Santo, que são títulos importantes dados a Dom Oscar Romero. Escolhi o adjetivo cristão. Decerto ele foi Profeta, Mártir e Santo, canonizado que foi no dia 14 de Outubro de 2018, ao lado de Paulo VI e mais cinco novos santos. O povo de El Salvador como santo já o tinha ainda em vida. Nos últimos tempos venho aprofundando esse conceito de Cristão, a ele subordinando e condicionando todas as outras realidades, inclusive do universo católico, que é o lugar de onde teço minhas análises, minhas falas.

Segundo, com esses artigos, (divididos em três partes), agradeço ao Padre Virgílio Almeida, da Arquidiocese de João Pessoa que, nas aulas de História da Igreja, no Seminário Imaculada Conceição da Paraíba, ali pelos anos 90, nos mostrou essa Igreja latino americana, que luta, sofre, é perseguida, profética e martirial e que, plena de fé, caminha rumo a um mundo melhor para todos. Com ele estudamos, entre outros, o livro Jesus, o Libertador, de Jon Sobrino, lançado em 1996.

Dom Oscar Romero me é muito íntimo, pois foi um dos mártires que mais me debrucei para conhecer a vida, a obra e o ensinamento. Portanto, escrever essas linhas, nesses dias em que a Igreja celebra seu martírio, ocorrido aos 24 de março de 1980, me comove bastante. Por isso, farei uma escrita e reflexão muito aberta, sem abordar determinados aspectos teológicos, espirituais, pastorais, episcopais, humanos, sociais de Dom Oscar Romero. Creio que reduziria o que pretendo dizer sobre ele.

Diz uma famosa canção, feita para ele, cantada pelo Cuarteto "Los Farabundos” após seu martírio:

 

El 24 de Marzo

la Iglesia no olvidará

que otra vez bañan con sangre

al que dijo la verdad.

 

Ya nos quitaron al hombre

más valioso de la Iglesia

por su ejemplo y valentía

un verdadero profeta.

 

Óscar Arnulfo Romero

tú fuiste nuestro pastor

y en los sencillos y humildes

pusiste tu corazón.

 

Recuerdo cuando llegabas

allá por nuestros cantones

a ver a los campesinos,

a ver a tus gentes pobres.

 

Al pueblo le queda claro

que tu muerte no fue aislada:

fue acción del imperialismo

junto con la fuerza armada.

 

La sangre que derramaste

fue por la cause del pueblo

que hoy sufre gran represión

por los ricos y el gobierno.

 

Pilato a vuelto a la tierra,

lo representa el tirano

porque ellos lo asesinaron

y ahora se lavan las manos

 

Óscar Arnulfo no ha muerto,

vive en la lucha del pueblo

por eso nunca se olvida

de su heróico ejemplo.

 

Essa música por si só já conta tudo sobre Dom Oscar Romero: Profeta, mártir, vive na luta do povo, exemplo heroico, que disse a verdade e foi morto.

Morto pelo imperialismo, pelo capitalismo. Morto pelas forças armadas. Morto por incomodar, com o evangelho e com a fé, os poderosos. Morto por uma sociedade dita cristã. Morto por ser um profeta, no sentido estrito da palavra. Um profeta que não cala, não teme, não abjura, não faz concessões. Em suma, um profeta que diz o que Deus quer que seja dito e não o que o Rei quer ouvir, Como manda a tradição da profecia desde os tempos bíblicos.

Segundo Jon Sobrino, no livro Oscar Romero, Profeta e Mártir da Libertação, Dom Oscar Romero foi mesmo um profeta. A primeira característica do profeta é ser chamado por Deus. Ninguém se faz profeta por força própria ou por sua própria vontade. O profeta é homem da palavra e do gesto, como consequência da palavra.

Diz Jon Sobrino que a palavra profética tem três dimensões básicas: a) Dimensão histórica (Versa sobre o concreto da história, o tempo em que se vive); b) Dimensão teológica (Última, Soberana, Parcial, Nova, Débil) e c) Dimensão Escatológica (sobrevive ao profeta em si).

O gesto profético faz parte da profecia. Tanto que profecia sem gesto é característica dos falsos profetas, o que implica dizer, em outras palavras, não é profecia. O gesto profético escandaliza os costumes, a tradição. Exemplos de gestos proféticos de Dom Oscar Romero, que analisei em 2007, no meu livro Profecia: 1) – Não assistiu, nem celebrou Missa pela posse do Presidente de El Salvador e 2) - Não cedeu a Catedral de San Salvador para que o Núncio Apostólico celebrasse o Dia do Papa, com a presença do Presidente de El Salvador, que matava seus padres e o povo.

Assumindo o destino de profeta – atividade intimamente ligada ao Martírio – Dom Oscar Romero foi martirizado antes, durante e depois da sua morte. A Cúria Romana recusou vê-lo seis vezes e por seis vezes que foi a Roma, não foi recebido pelo Papa João Paulo II. E quando uma das vezes praticamente se jogou em cima do Papa, que passava, foi desacreditado, intimado a não prosseguir em suas denúncias contra o governo de El Salvador. Viu e ouviu o Papa e seus assessores caluniarem os padres assassinados, inclusive Rutílio Grande, acusando-os de terroristas. Dom Oscar Romero foi caluniado por padres ultraconservadores, como ainda hoje o é. Foi perseguido por irmãos do Episcopado antes, durante seu martírio e mesmo depois. Entre os difamadores de Dom Oscar Romero dentro do Vaticano, figuravam dois influentes cardeais: os colombianos Alfonso López Trujillo, conhecido por suas posições ultraconservadoras, e Darío Castrillón Hoyos, ambos falecidos, que ocupavam, na década de 1990, importantes cargos na cúria romana.

Por isso, foi forte a fala do Santo Padre Francisco, aos peregrinos de El Salvador, no dia 30 de Outubro de 2016, ao se referir a Dom Oscar Romero, já então beato. Eis o que diz “o Papa do fim do mundo”, como ele se disse:

 

Gostaria de acrescentar algo que, talvez, passamos por cima. O martírio de Dom Romero não ocorreu apenas no momento da sua morte. Foi um martírio-testemunho, sofrimento anterior, perseguição anterior, até a sua morte. Mas também foi posterior, porque, uma vez morto – eu era sacerdote jovem e fui testemunha disso –, ele foi difamado, caluniado, sujado, ou seja, o seu martírio continuou inclusive por parte dos seus irmãos no sacerdócio e no episcopado. Não falo por ter ouvido dizer. Eu escutei essas coisas. (UNISINOS, 2017).

 

 

Dom Oscar Romero foi um exemplo de verdadeira conversão. Além de exemplo, foi sintomático do que seja uma conversão a Cristo, a Deus, à fé, como se espera quando se evangeliza. Eis um dos aspectos que o fazem atual para a América Latina, principalmente El Salvador, para a igreja, enquanto instituição e para todos os fiéis que frequentam as naves das igrejas, templos, santuários, catedrais.

Decerto, na história da América, a Igreja não converteu: submeteu povos inteiros à sua vontade, sua doutrina, promovendo um deicídio na América inteira, impondo uma fé, um Deus, uma Igreja. E os povos ameríndios não podem ser ditos convertidos. Muito menos que foram cristianizados. Foram catolicizados. A igreja na América Latina não cristianizou. Catolicizou. Sendo o mesmo processo feito pelas igrejas reformadas.

As Igrejas centram-se nas liturgias como se elas tivessem, em si mesmas, intrínsecas em sua natureza, o poder de conversão. Os ritos, sejam eles quais forem, não tem poder de conversão. Aliás, só vai ao rito, à liturgia, ao culto, ao terço, quem já é portador da fé.

Conversão é um tema sério na igreja, pois, afinal, é sua missão, sua meta, sua razão de ser e de existir. Pois bem! Dom Oscar Romero, agora São Romero, nos dá um exemplo de conversão, em seu diário. Homem do rito e dos livros, da biblioteca, introvertido. Diz ele: “Fui coroinha, fui seminarista, fui Padre, fui Monsenhor, fui Bispo e não era Cristão. Não conhecia a Deus. Minha conversão se deu aos 60 anos de idade quando vi Deus no pobre”. (ROMERO apud SOBRINO 1996).

E quem mostrou a Dom Oscar Romero o rosto de Deus nos pobres foi o padre e seu amigo Rutílio Grande, em 1977. Rutílio Grande foi assassinado pela polícia de El Salvador no dia 12 de Março de 1977. Após seu assassinato, o processo de conversão de Dom Oscar Romero foi se acentuando.

Dom Oscar mostra o perfil do convertido. Quem se converteu a Deus, coloca Deus acima de todas as coisas. Teoricamente, eu digo o evidente. Na prática é que é. Ou Deus é o primeiro na minha vida ou eu não sou CRISTÃO. Sou ATEU. Um Deus que é o segundo, já não é mais Deus. Só tem Deus quem adere a Ele de uma maneira Absoluta. E este é um grande problema para a igreja enquanto instituição e para cada um de nós. Essa é a grande questão: ATÉ QUE PONTO DEUS É O PRIMEIRO NA VIDA DA IGREJA E NA NOSSA?

Foi a partir de sua conversão, que Dom Oscar Romero, segundo Jon Sobrino, no livro Oscar Romero: Profeta e Mártir da Libertação, levantou as duas mais sérias questões para a Igreja: 1 – A IGREJA CRÊ EM DEUS? 2 – EM QUE DEUS ACREDITA A IGREJA?

Escolhido como Bispo auxiliar de San Salvador, por seu perfil introvertido, de não envolvimento, para manter a ordem das coisas, a partir de sua conversão Dom Oscar Romero põe-se contra essa ordem das coisas. Essa ordem das coisas mantinha um governo que assassinava opositores, fossem eles quem fossem: sindicalistas, professores, estudantes, camponeses, operários...e padres. Em El salvador dos anos 80 tinha até Outdoor como os dizeres: “SALVE A PÁTRIA. MATE UM PADRE!”. E tinha uma igreja em parte conivente com essa realidade, desde Roma ao Núncio apostólico e a bispos e padres de El Salvador.

Pois bem! Convertido, Dom Oscar Romero põe-se contra essa realidade das coisas, em sua totalidade. Vai contra a política desumana ali praticada, como também vai contra os irmãos sacerdotes, bispos que apoiam essa necropolítica. Dias antes de ser assassinado, Dom Oscar Romero, em uma pregação, diz essa frase, segundo Jon Sobrino: “- Precisamos de profetas que nos falem, também a nós da igreja” (SOBRINO, 1988).

Dom Oscar Romero passa a ouvir o povo e denunciar os crimes cometidos pelo Exército, pelo governo e pelos paramilitares. Denuncia ainda a injustiça social, a fome do povo. Dai, passa a conviver com os pobres e a recebê-los em sua casa, para lhes ouvir as angustias. Identifica-se ao povo. Profere essa identidade na famosa sentença: “Se me matam, ressuscitarei no povo salvadorenho.” (SOBRINO, 1996).

Três anos depois de sua conversão, Dom Oscar Romero foi assassinado, aos 24 de março de 1980, por Walter Antonio Álvarez, um membro do BATALHÃO ATLACATL, batalhão de elite do Exército de El Salvador. Um egresso da Escola das Américas.

A Escola das Américas era uma escola militar, situada em Fort Benning, Columbus, no Estado da Geórgia. A escola esteve, de 1946 a 1984, situada no Panamá. Essa escola treinava soldados para agirem na América Latina dando apoio às ditaduras militares. Foi onde se graduaram mais de 60 mil militares e policiais de cerca de 23 países da América Latina. Alguns deles de especial relevância pelos seus crimes contra a humanidade, como os generais Leopoldo Fortunato Galtieri e Manuel Noriega. Essa ação incluía o assassinato de lideres populistas, bispos, padres, sindicalistas, líderes camponeses. Esses graduados da Escola das Américas atuavam no sentido de assumirem o comando dos países Latino-Americanos.

Em 15 de dezembro de 2000, a Escola das Américas foi fechada oficialmente. Mas, até 01 de julho de 1999, havia graduado uma média de 61.034 alunos.

Assassinado no exato momento em que fazia a consagração do pão e do vinho no altar. Seu assassinato foi produto de uma conspiração entre o governo de El Salvador e um “esquadrão da morte”, grupo paramilitar de extrema-direita, comandado pelo então chefe do exército, Roberto D’Aubuisson, também ele egresso da Escola das Américas. Assassinado também por, no dia anterior, 23 de março, ter proferido essas palavras

 

- Soldados! Son deste miesmo Pueblo! Em nombre de Dios! Em nombre deste miesmo Pueblo, cujos lamentos sobien até los cielos cada dia más constantes, Yo vos rogo! Yo vos suplico! Yo vos ordeno! Cessem la repressión! (ROMERO apud SOBRINO, 1996).

 

Quando de sua morte, de seu martírio, Dom Pedro Casaldáliga, Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso, em um belo poema, pronunciou: “São Romero da América, ninguém fará calar tua última homilia!”(Sobrino, 1996).

A morte martirial de Dom Oscar Romero foi sua mais eloquente homilia. Naquele dia, falou ao mundo todo, à igreja toda. Todos se voltaram para El Salvador e para seu Bispo Mártir. O mundo voltou os olhos àquela realidade e aos apelos do Profeta. O mundo escutou, como dizem dele, “A VOZ DOS QUE NÃO TÊM VOZ.” E Dom Oscar Romero foi a voz dos pobres do campo, dos trabalhadores urbanos, dos professores, dos mendigos, dos perseguidos, dos torturados, dos exilados, dos excluídos.

Em vida, unido ao povo, por força da conversão. Na morte, unindo seu sangue ao sangue de Cristo, já consagrado.

Hoje, que forças de direita tomam o poder, hoje que torturadores são ressuscitados de suas tumbas como exemplos, hoje que se apregoa a perseguição, hoje que forças de governo atentam contra a dignidade humana, hoje que prega-se o ódio a qualquer crítico social, seja civil, religioso ou militar, o exemplo cristão de Dom Oscar Romero nos interpela em nossa própria fé. Dom Oscar Romero nos interpela a sairmos do comodismo e do falso cristianismo. Um cristianismo que faz concessões, que apoia forças de morte não pode ser o mesmo de Dom Oscar Romero, nem de Jesus Cristo. Diz, com muita propriedade, o filósofo argentino Enrique Dussel: “ A razão que critica não pode ser a mesma razão que legitima a coisa criticada.” O cristianismo que apoia as forças de morte atuais não pode ser o mesmo de Jesus de Nazaré, que criticava as mesmas forças do seu tempo, fossem elas civis ou religiosas. Não pode ser o mesmo cristianismo de Dom Oscar Romero.

Que São Romero da América nos ajude a seguirmos na mesma caminhada profética, de libertação, de denúncia, que foi, afinal, o mesmo caminho de Jesus Cristo.

 

 

Referências:

 

Codina, Victor. Para compreender a Eclesiologia a partir da América Latina. Ed. Paulinas, São Paulo. 1993.

 

Marins, José. Trevisam, Teolide M. e Chavona, Carolee. MARTÍRIO: Memória Perigosa na América Latina, Ed. Paulinas, São Paulo, 1984.

 

Romero, Oscar. O Profeta dos Oprimidos da América Latina. Diário de Dom Oscar Romero. Ed. Paulinas. São Paulo, 1997.

 

Santana, Genildo. Profecia. Ed. Asa Branca, Tabira, 2007.

 

Sobrino, Jon. Jesus, o Libertador, Ed. Vozes, Petrópolis. 2ªdição. 1996.

 

______, Jon. Oscar Romero, Profeta e Mártir da Libertação. Ed. Loyola. São Paulo, 1988.

 

______, Jon. Os Seis Jesuítas Mártires de El Salvador. Ed. Loyola. São Paulo, 1990.

 

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